25 de setembro de 2019

Viagens no Novo Mundo

Lembro-me do que aprendi na faculdade nos anos 80 acerca dos esquemas. Revi este assunto numa outra perspectiva, uns bons aninhos mais tarde, quando frequentei o curso de Ciência Cognitiva. No essencial, um esquema é um conhecimento prévio, esquemático como o nome diz, que se aplica a uma situação nova facilitando a sua interpretação. Difere do preconceito, que é rígido e imperativo, o que não vem agora ao caso.

Sem deter um número razoável de esquemas é impossível compreender o mundo. E compreender o mundo é reconhecer em situações novas aquilo que já é conhecido. Sei que para andar de transporte público devo adquirir um título válido, seja um passe, seja um bilhete adquirido na estação, no interior do veículo ou na Internet.

Raramente as variações são locais: depois de inventadas tendem a espalhar-se por todo o mundo e isso facilita- nos imenso a vida. Aqui, em Cambridge Street, quando entro no 69 para ir para Lechemeher ou para Harvard, puxo da carteira, coloco-a no leitor que emite um som e o motorista diz-me thank you. O facto de o motorista me agradecer tem a ver com a realidade - Boston não é Lisboa - e não com o esquema. Isso é um facto digno de nota, é notícia, é aquisição de conhecimento (a raiz latina para conhecimento, cognoscere, é a mesma de "notícia" e de "notoriedade").



 Ao longo do tempo, porém, as variações dão origem a noras formulações dos esquemas. Os nossos avós jamais poderiam imaginar uma compra pela Internet; os nossos netos vão ficar de boca à banda ao saber que havia outras maneiras de comprar coisas.

Assim, quando ando aqui pelas Américas, já sei como é que as coisas se vão passar e só tenho que me informar dos pequenos detalhes e das alternativas que tornam as viagens mais cómodas e baratas. Olha: as lojas à 1 PM estão fechadas.

As vezes as coisas que vemos no estrangeiro não encaixam nos nossos esquemas. E aí que as coisas se tornam interessantes. São essas as coisas que vamos contar quando chegarmos. Estou a ver as narrativas mirabolantes dos viajantes que chegavam das terras incógnitas no crepúsculo da Idade Média, como o relato de Antonio Pigafetta na sua chegada ao Brasil. Qual é a etimologia de "maravilha"? E mirabilia , aquilo que espanta. Mas, a realidade é espantosa quando não se enquadra nos nossos esquemas.

Aí, nascem as narrativas do maravilhoso.

Ao contrário da tendência para exagerar, que sendo voluntária e consciente, é necessariamente lógica, e prende-se muito com as vaidades pessoais, próprias ou de outrem, a hipérbole, ou o esticar as coisas para mostrar como elas são grandes, flui fora dos holofotes e é inócua. A pequena mentirola, por seu lado, serve para fazer passar a realidade quando ela não se encaixa no nosso conhecimento.

Embora os esquemas sejam universais para um dado contexto cultural e histórico, o seu uso é muito particular e prende- se com a história e os interesses individuais de uma pessoa. Quando viajamos os dois, ela vê coisas que eu não veria se ela não me chamasse a atenção para elas: "olha, o azul daquela casa é muito giro". O contrário assenta como luva à situação inversa. Onde tinha ela a cabeça quando passámos por um jardim deslumbrante com espécimes raros? Esta observação vai levá-la a retorquir. Bolas! De que está ela a falar? Se eu vi o quê? Respondo sempre que não me lembro, o que é mentira. Como posso eu lembrar-me do que não vi?

Os esquemas competem entre si para se aplicar à realidade. Uma conversa entre duas pessoas sobre um evento é uma luta entre os esquemas dominantes de cada uma. Não se trata de discutir ideias sobre a realidade, trata-se de discutir a realidade dentro da própria realidade, ou seja, numa dada situação como devo comportar-me? Para onde devo dirigir o olhar? Em que é que me devo concentrar? O que reter em memória?

Mas essas lutas dão-se também, e sobretudo, na cabeça de cada um de nós. Esta realidade é melhor entendida usando o esquema A ou o esquema A'? Por isso, gosto de revisitar os sitos que amo. Em 2013 apaixonei-me pelo Arnold Arboretum. Passados 6 anos tive que o revisitar. Como foi muito fácil reconhecê-lo, pude pesquisar novas facetas que respondem aos meus interesses. Fui lá encontrar respostas para perguntas que levava na algibeira. Porque o conhecimento da realidade tem muito a ver com o que queremos fazer a respeito dela.

E muito pouco, ou mesmo nada, com a verdade.

7 de janeiro de 2016

Último postal enviado desta morada

Daqui mando este postalito para anunciar que estou em processo de mudança.  O URL do blogue no novo domínio é:

http://www.blog.tremontelo.pt/ 

Agradeço uma visita e um comentário breve. Este é o último postal neste blogue do blogspot. 


Adenda:

O meu sítio "O Portal Das Angiospérmicas" já está  online em:

http://www.portal.tremontelo.pt/ 

15 de setembro de 2015

No pequeno rectângulo de luz

Eu sei que hoje foi um dia cansativo de não fazer nada. Dizendo melhor: que ontem foi um dia cansativo de fazer nada. 

"Melhor" não quer dizer "mais bom", quer antes dizer mais acertado com os relógios e os calendários. Caso contrário, não estaria hoje a ser hoje ainda em continuidade com o longo e cansativo dia em que não fiz nada. Não fazer nada é uma maneira utilitarista de dizer, fiz mesmo muitas coisas que não serviram para nada. Lá servir, serviram, mas foi apenas para miúdos fins, coisas de pouca monta que, somadas, deram uma grande canseira. Que, se não tivessem acontecido, não se daria por falta delas. Em vez de fazer o almoço e o jantar, e de ter lavado a loiça, poderia ter ido ao restaurante. Mas não. Teimei em ficar o dia a ver os outros a trabalhar, a assistir às conversas que se deve ter quando se está a trabalhar, a persistir em conversas de que não somos parte, apenas somos apanhados por elas como árvores arrancadas ao solo pelo vento. O dia passamo-lo a assentar o corpo, ora numa perna, ora noutra. E, quando nos deitamos, damo-nos conta de que o passámos todinho a moer os discos intervertebrais, tal é a má disposição, tais são as dores, o incómodo da falta de posição, um sei lá quê de mazelas. É aí que o dia não passa, continua pela noite adentro, uma noite cansativa de não fazer nada, com a mudança apenas de o corpo passar da vertical para a horizontal e o dia do claro para o escuro. 

Pois bem, o corpo dói na mesma antes e depois de accionar o interruptor do candeeiro. Mas as dores doem mais na consciência no escuro, que a consciência não se distrai tanto. E as dores do corpo misturam-se com as dores do eu, que é isso que torna aquelas insuportáveis. Para fugir a tanta dolência, acendo o iPad como quem abre um livro. O eu fica agarrado ao pequeno rectângulo de luz. É disso que ele gosta, de rectângulos iluminados. O corpo continua a doer, mas de uma dor que já não dói tanto, que quase não dói. A consciência, agora, ocupa-se das "dores de alma", das preocupações, que não são as ocupações de que nos prevenimos criando soluções virtuais para os problemas que temos, ou julgamos ter, ou não temos mas azinha os teremos.

É impressionante a tralha que vem à consciência no escuro da noite, tirando aquele remendo nos fundilhos da noite que é um pequeno rectângulo de luz. Vem em catadupa e é difícil de apanhar, uns rasgos aqui, outros ali. Parece o lixo que se levanta e remoinha no ar impulsionado por uma rajada de vento. Pedaços, papelinhos rasgados, fragmentos do caderno diário cheio de frases incompletas com sentido, cheio de frases completas sem sentido. A gente esbraceja a apanhar um pedaço aqui, outro ali, sabendo que não vale a pena juntá-los. Eles passam em sucessão e nós chamamos a isso o tempo. Como podíamos chamar qualquer outra coisa. Também chamamos tempo a outra coisa, que é estar chuva ou a sorrir, estar ensolarado ou húmido. 

Depois, começa tudo a baralhar-se. E quando eu for desligar o iPad e pousá-lo na mesa de cabeceira

27 de agosto de 2015

Um momento singular retirado do contínuo da vida.

Já houve tempos em que havia Verão. Nos dias de hoje, em que os desgovernos da nossa língua o minimizaram, pouco mais tem do que o nome. E, para quem tem memórias, e vive longe dos fogos postos, um nome minguado de significado. De resto, a vida continua. E continuaria, lenta e cheia de rançosa monotonia, não fossem os mais jovens continuamente nos prodigalizarem de preocupações e percalços, os tais cadilhos que abalam o edifício das emoções, já de si tão frágil, e minimizam o cabedal, de si já tão escasso. Hoje trata-se dos seus em idade em que era suposto ser-se por eles tratado. Já não há tempo para ser velho, vive-se em trabalhos forçados de meia-idade, em que a jovialidade e a frescura de ideias se habituaram a conviver com o reumatismo e as outras dores do corpo e da alma.

Deu-me a insónia às quatro da manhã. Acho que vai tornar-se um hábito. Estão catorze graus cá fora ao fresco, onde me sentei a escrever. Felizmente não há mosquitos. A palha seca cheira a estrumaria. Os galos, tanto a norte como a sul, cantam com vozes roucas e esganiçadas, talvez para as sobrepor à barulheira que vem da auto-estrada, hoje, que não sopra vento, inabitualmente ruidosa com o trovejar dos camiões. De repente, susteve-se, por momentos, o barulho. Como que incomodados pelo silêncio, os cães desataram a ladrar. Passa uma brisa que arrefece as partes do corpo desabrigadas pelo roupão. O Pêto estirou o esqueleto em todas as direcções e encaminhou-se vagarosamente para os meus pés onde se enroscou. Agora só ouço o seu ronronar descompassado com o tique-taque exacto do relógio barato do Ikea. Experimento que a vida continua. Acho que é assim que a vida deve ser vivida: agarrados ao momento que passa mas que em si mesmo perdura. E cada momento que passa é uma experiência de eternidade. Um galo canta novamente e a brisa endurece. É momento de voltar e saborear as quenturas do quarto e dos lençóis com a consciência a ansiar por outras vivências mais desordenadas e de difícil compreensão.

25 de agosto de 2015

E o Sol continua a nascer todos os dias

Alguém se lembra de como era o mundo antes de haver o Facebook? Alguém se lembra de como era mundo antes de haver internet? Alguém se lembra de como era o mundo antes de haver canais por cabo e televisão a cores? Alguém se lembra de como era o mundo antes de haver telefonia?

Eu nasci, precisamente, um pouco depois de começar a haver rádio e um pouco antes de haver um canal de televisão a preto e branco. Também só havia uma auto-estrada que ia de Lisboa ao Estádio Nacional no vale de Jamor. Para quê mais se carros havia poucos e andávamos imenso tempo a pé para apanhar os transportes públicos? 

Não vou afirmar que hoje há mais funcionamento do "eu" do que actividade do corpo, mais estados conscientes desligados da realidade "real", mais mundo virtual do que mundo "real". Também entretínhamos as mentes só que à maneira daquele tempo: líamos os contos infantis do Andersen nos livros da Majora, estávamos atentos, enquanto brincávamos com molas da roupa e caricas, aos folhetins do Tide que a mãe ouvia enquanto lavava a loiça do almoço, devaneávamos durante a marcha de vinte minutos, através das azinhagas no meio dos trigais, quando íamos apanhar a Benfica o eléctrico para os Restauradores. 

Se houve nos últimos tempos uma revolução tecnológica, o que ela revolucionou foi o mundo. O mundo já não é como era. As mentes estão mais emaranhadas umas nas outras numa complexa rede ou teia de interacções rápidas, quase instantâneas. Afinal, feitas as contas, o que mudou foi a aceleração do mundo. Os "eus" continuam encerrados nas suas conchas, nas suas múltiplas conchas e personalidades, enquistados dentro de si próprios como os prisioneiros da caverna de Platão, e os corpos são coisas lá de "fora", aglomerados de átomos de Democrito a caírem teimosamente na vertical. Houve, antes desta, uma grande revolução. A revolução industrial? Não, isso são trocos. Uma revolução a sério que consagrou o corte do mundo em real e virtual, a separação entre o corpo e o "eu", entre a "natureza" e a cidade, entre "povo" e dirigentes, entre a "sociedade humana" e as mulheres, entre céu e terra, entre o criador e as criaturas. A revolução agrícola abriu a caixa de Pandora.

"Estas distraído?", pergunta o Pêto, "Antes estavas atento às minhas necessidades. Não é aí que eu quero que me coces. E diz ao Escãozelado que ainda não chegou a hora dele e que vá dar uma voltinha".

Parecia que vinha aí uma carga de chuva mas não aconteceu nada. Agora raiou o sol, mudaram-se os humores, chegou a altura de ir trabalhar.


23 de agosto de 2015

Finalmente, o Tremontelo!

Gosto muito das férias, sobretudo dos regressos. Não sou homem de viagens. Melhor dito, de viagens por fora pois tenho em muito apreço as viagens interiores. O prazer da viagem vem da descoberta de novos lugares e,  no sítio onde se está, há lugares dentro de lugares num encaixamento de matrioscas ad infinitum. Viajar por fora é perder lugares e viajar cá dentro é ganhar insuspeitados lugares.

Quando cheguei há dois dias, tinha uma comissão de recepção à minha espera por detrás do portão. Anafados e luzidios, que a vizinha pusera zelo no seu tratamento. Assim que abri o portão de par em par, desataram na tresloucada corrida em círculos com que cerimonializam o contentamento, mantendo-se a uma prudente distância como se o meu afastamento temporário, que eles certamente, desaprovam, acarretasse a importação de apocalípticas pragas ou aquela desafronta merecesse clara e veemente desaprovação e repúdio. Quando, finalmente, me libertei das arrumações e tive um tempinho para lhes dar atenção, nem ligaram às papinhas. O que eles queriam era festinhas e afagos, coceguinhas  no pescoço e nas orelhas, não as ajustadas à sua necessidade mas em excesso, em descomedido e humano excedimento, hybris felina, sem saciação nem enfado. Eles sabem que me põe louco aquele ronronar arfante, ronronam todos em dissonia concertada, o meu ritmo cardíaco apazigua-se e dilui-se no mar de verde dos meus jardins.

A G. chegou mais tarde para o fim-de-semana. Intalámo-nos nos prazeres do Tremontelo que consistem em tirar prazer de tudo como se não tivesse havido ontem e não fosse haver amanhã. Havia ainda tomates e maçãs para apanhar. Grandes pequenos afazeres que não cabem numa agenda. Hoje é manhã de domingo. Levantei-me cedo e fiz imensas coisas. Agora estou na cama a escrever. Lá fora chove de mansinho.

20 de agosto de 2015

O organismo, o corpo, o cérebro e o eu.

Nos postais anteriores tornei patentes e manifestas duas das minhas mais preciosas convicções: 1) que o eu é, não só uma ilusão, como é também um ilusionista; 2) que o cérebro constrói máquinas virtuais. Neste postal vou introduzir a ideia de que o eu é a maior e a mais completa das hipermáquinas virtuais criadas pelo cérebro.

Antes disso, à boa maneira da escolástica, quer da medieval, quer da moderna anglo-saxónica, convém clarificar os termos com um rotundo distinguo. A linguagem humana comporta sistemas lexicais complexos em que cada vocábulo lexical (deixemos, por ora, os vocábulos gramaticais) se associa a outros vocábulos lexicais por afinidades de significação. Por exemplo, "belo" está na proximidade de "bonito", de "esbelto" e de "formoso". Engana-se quem pensar que estas palavras são estritamente sinónimas. O seu significado varia de palavra para palavra segundo diversos prismas (punhamos de lado as subtilezas dos termos técnicos, mas pouco interessantes, como denotação e conotação).

  • Em primeiro lugar, cada palavra convém a um contexto específico: dizemos que um quadro é belo e que certo homem é formoso e dificilmente invertemos esse uso. 
  • Em segundo lugar, cada pessoa associa uma significação específica a cada termo de uma forma idiossincrática, de acordo com a sua construção particular de significados. Eu associo "belo" a "sublime" e "bonito" a "piroso". Mesmo que outra pessoa faça o mesmo, nada garante que, para ela, "sublime" e "piroso" tenha o mesmo significado que esses termos têm para mim. 
  • Finalmente, o significado das palavras varia com o tempo. "Traficante", "bodega" e "hospital" tiveram na sua origem significados nada coincidentes com os actuais. 
Para resumir, cada palavra parece-se com outra, esta com outra ainda, numa cadeia de remissões sem fim. O sistema lexical é um novelo em que, algures, cada palavra se aparenta com outra de significação oposta. Quem pensar que pode associar o significado de uma palavra a algo de real, de exterior ao sistema linguístico, engana-se. O significado é construído no interior do discurso pelo discurso e para fazer compreender outrem o que temos na mente é preciso continuar a discorrer e a dialogar num processo que só é interrompido pelo cansaço ou pelas imposições práticas da vida social. Na melhor das hipóteses, o outro alcançará uma compreensão aproximada do nosso pensamento, o que é sempre melhor do que não haver entendimento e consenso. Mas, certamente, o exercício acumulará nos interlocutores elevados níveis de oxitocina e funcionará como a melhor das drogas da felicidade. É o prazer de falar, de escrever e de ler.

Vamos lá então clarificar os termos que eu vou utilizar na minha conversa.

Uma couve galega, uma margarida, um insecto, um gato e um humano são organismos biológicos, sendo cada um representante de uma espécie biológica distinta. As espécies (ou os géneros, as famílias, os taxa em geral) são abstracções criadas pela ciência para relacionar os indivíduos entre si do ponto de vista dos aspectos morfológico e funcional, genético e evolucionário. O que na realidade existe são os organismos, cada um por si e para si, indivisíveis e finitos no espaço e no tempo cósmico. A indivisibilidade é talvez a sua característica mais importante dos animais superiores, fonte da sua individualidade e identidade. Se racharmos uma pedra ou um pedaço de madeira ao meio, aparecem em seu lugar duas pedras ou dois pedaços de madeira. Se cortarmos um ramo de um arbusto e enterrarmos um pedaço no solo, havendo as condições adequadas conseguiremos clonar um novo arbusto. Se cortarmos ao meio um organismo animal, o todo morre ou morre uma das partes continuando a outra viva. O organismo animal é uno e idêntico a si mesmo, porque é indivisível. Podemos, então, à vontade tratá-lo por indivíduo.



Os organismos ou indivíduos existem, são fisicamente reais, constituídos por moléculas de matéria organizadas de acordo com um determinado estado do mundo. O corpo (termo geralmente reservado para utilizar com animais) reflecte essa constituição e organização. Todavia, não irei utilizar o corpo como sinónimo de organismo ou indivíduo. O corpo é a parte do organismo que se distingue da cabeça, como na expressão "quando o corpo não tem juízo, a cabeça é que as paga". Mas não gosto do termo cabeça pois não exprime bem a oposição que se pretende. O importante é o órgão que está no interior da caixa craniana, o cérebro. O cérebro é uma parte especializada de um sistema, o sistema nervoso, que assegura o controlo do todo. Há outros sistemas com essa função como o sistema endócrino e o sistema imunitário. No futuro, a ciência irá englobar estes três sistemas num único. Mas, para já, fiquemo-nos pelas convenções actuais e evitemos a ficção especulativa.

O cérebro tem uma organização complexa. Cada parte exerce uma função específica no tratamento da informação que permanentemente flui no interior do organismo e de e para o meio exterior. Por exemplo, certas partes do córtex visual tratam da topografia e da geometria da visão, outras do movimento das cenas visionadas, outras da identificação dos objectos visionados. Há circuitos onde passa informação visual de uma forma consciente e outros onde passa não conscientemente (a tal percepção subliminar de que tanto se fala com tão escasso conhecimento e a que estão associados tantos mitos).

Uma particularidade importante do cérebro é a geração de memórias explícitas e implícitas de longo prazo. Ao contrário do que anda para aí espalhado, estas memórias não são como os discos rígidos dos computadores, onde se escreve e de onde se recupera informação. As memórias não são lugares que contenham informação. São mais como receitas de culinária que explicam que ingredientes são necessários para reproduzir uma cena e quais os procedimentos que se deve seguir para obter essa cena reproduzida. E os ingredientes são sempre relacionados com a realidade actual e o contexto presente, nada que tenha sido "gravado" no cérebro ou noutro sítio qualquer. O que vai sendo gravado e regravado (sem controlo de versões) é um conjunto de disposições, de regras, de algoritmos para obter um resultado. Por outras palavras, máquinas virtuais. O cérebro é um engenheiro e um operário especializado, um produtor e um condutor de máquinas virtuais. 

No seu importante papel de vigilante, controlador, guarda, provedor e cuidador do organismo (e não só do corpo porque o cérebro também tem que cuidar de si próprio), o cérebro está continuamente a produzir representações mapeadas de todo o organismo e de cada uma das partes (sensações, movimentos, humores, emoções), aquilo a que nos referimos quando falamos de imagem corporal, auto-imagem, auto-estima, etc. Sentir uma dor nas articulações ou um formigueiro num braço que já não existe (membro fantasma), sofrer uma paixão violenta ou estar triste, ter fome, ver lagos com baleias no deserto são representações criadas pela maquinaria cerebral.

A partir de certa idade na infância, sob o impulso do grupo social que alimenta e protege a criança, esse conjunto de representações autonomiza-se na forma de uma máquina virtual hipercomplexa e constitui-se em entidade à parte: organiza-se um "eu", um sistema que vai ter uma evolução peculiar. O que inicialmente era um duplo, um backup das experiências do organismo, autonomiza-se, torna-se consciente de si e da sua existência (cogito, ergo sum) e passa a dono do organismo. Com a velhice ou o eventual aparecimento de doenças neurológicas (Alzheimer, demência semântica) começa a esfumar-se até desaparecer, como o gradual desaparecimento das cores numa fotografia analógica impressa há muito tempo.

Como tem muito que se lhe diga, e como ainda estamos muito longe de conseguir ver o que é que tudo isto (inclusivamente a intromissão cartesiana) tem a ver com o Tremontelo, fiquemos hoje por aqui. 

Só para relembrar e sumarizar:

  • O organismo, composto de corpo e cérebro, é um indivíduo real que existe materialmente. 
  • O eu é uma máquina virtual do organismo que tem a ilusão de o controlar e age como ilusionista (veremos como em próximos postais). 
  • O organismo tem um vida efémera. 
  • O eu ainda mais: nasce mais tarde que o organismo e morre mais cedo do que este dependendo da condição neurológica do cérebro. 
O eu humano é mais complexo do que o eu do gato, e este mais complexo do que o eu do insecto. É difícil pensar que a couve ou a margarida tenham eus. Na impossibilidade de o saber, o melhor é calarmo-nos.


18 de agosto de 2015

As máquinas e, em particular, as máquinas virtuais.

Dizer que há mil e uma maneiras de descrever uma máquina é limitar grosseiramente a questão, pois cada pessoa tem a sua maneira de entender o que é uma máquina e algumas, um número ainda muito razoável, têm mais do que uma maneira.

Seja qual for a subtileza de cada um, quando se fala de máquinas as pessoas entendem. Por outras palavras: há sempre um mínimo de compreensão partilhada a respeito do que vem a ser uma máquina, um consenso se tal ou tal objecto é um exemplar de máquina.

Para identificar o conteúdo que as pessoas atribuem às palavras, costumo analisar, quando as encontro, expressões que as pessoas usam com sentido vago e pendor metafórico. Por exemplo, toda a gente percebe o que quer dizer "Fulano é uma máquina". Eu acho - corrijam-me se virem que estou enganado - que não é normal as pessoas serem máquinas e dai a excepcionalidade de Fulano. As pessoas não são, geralmente, máquinas porque há uma propriedades que distinguem as pessoas das máquinas: as máquinas são exactas, rigorosas e fiáveis no seu modo habitual de funcionar; pelo contrário, as pessoas têm comportamentos dúbios, vacilantes e imprevisíveis. Admitimos sem pestanejar que errar é humano. Dizer que  "Fulano é uma máquina é admitir que Fulano tende a ter um comportamento, pelo menos, que é exacto, rigoroso e fiável e de alta eficácia. 

Retemos desta conversa um achado interessante sobre as propriedades das máquinas. A máquina funciona de uma maneira precisa para obter um resultado preciso. Devemos, todavia, mencionar aqui, à cautela, um aspecto que desenvolveremos mais tarde: a máquina tem os seus limites. Ocorrem-me para já três deles: a má concepção, o mau uso e o desgaste devido ao uso prolongado.

O micro-ondas, o fogão eléctrico, o frigorífico e o exaustor são máquinas. Estão ali ao fundo, na cozinha, disponíveis para que eu me sirva delas. Há as máquinas que me fazem falta: as de lavar roupa ou loiça, por exemplo. Há outras menos óbvias, dispostas na mesinha ao meu lado: o relógio, a chave do carro, o telemóvel, o telecomando da televisão que está atrás de mim. E, claro, o iPad que tenho nas mãos.



Pomos qualquer coisa na máquina e essa qualquer coisa sai de lá transformada. Em linguagem de cão, diz-se que uma máquina transforma um input num output. Ponho água morna no frigorífico e, passado algum tempo, a água que retiro de lá está fria. 

As máquinas que mencionei são entidades físicas produzidas pelo ser humano, pelo homo faber, por isso realidades materiais de um tipo especial que designamos de artefactos. É habitual distinguirmos as coisas naturais (que provêm da natureza, que "nascem") das coisas artificiais (que provêm do artifício humano, que são fabricadas). Uma máquina, nestes termos, é uma entidade material produzida pela arte humana e concebida de maneira a transformar um input num output com valor acrescido para o seu utilizador. Uma máquina é uma função de transformação geradora de valor ou, dito por palavras mais simples, uma máquina serve para qualquer coisa. A geringonça, o mono e o paspalho são arremedos de máquina que não geram valor, que não têm serventia.

Apesar de tudo o que fica para trás dito, gostamos de descrever coisas naturais como se fossem máquinas. Um caso frequente ocorre na descrição dos órgãos dos seres vivos. Um órgão faz qualquer coisa, serve para qualquer coisa, comporta-se como se fosse uma máquina. O coração é uma bomba aspirante-premente, um fígado é um filtro, umas asas servem para voar.

Uma vez que reconhecemos a ocorrência de máquinas na natureza, não podemos voltar a insistir na ideia de que só as entidades materiais artificiais são máquinas. Os seres vivos desenvolvem órgãos cujo correcto funcionamento em bom estado de conservação opera transformações de valor para a totalidade do organismo, para o indivíduo vivente. Há máquinas inertes produtos da engenharia humana e máquinas vivas produtos da evolução natural. A engenharia, quer a dos artefactos, quer a dos produtos naturais, é um processo lento, sem autor, que resulta da acumulação de pequenos aperfeiçoamentos casuais pressionados pela necessidade e seleccionados pelo contexto.

Uma característica impressionante de qualquer máquina reside no facto de que nenhuma das propriedades que caracterizam a máquina enquanto máquina depender do material com que são construídas. É evidente que os materiais importam. Há materiais que garantem uma melhor conservação e duração, uns que são mais leves, outros porque são mais pesados, uns que são mais flexíveis, outros porque são mais rígidos; mas, a maior parte das vezes, o material empregue é o que se encontra mais à mão entre o que se presta a dar suporte à finalidade pretendida. Veja-se o caso dos ninhos. 

O que faz a máquina ser máquina é o algoritmo da sua construção. Muitas máquinas vivem só no "cérebro" das pessoas, dos animais ou dos computadores: são as máquinas virtuais.

Vou dar um exemplo muito simples de uma máquina virtual: a tabuada da adição. 

Para construirmos uma tabuada da adição, ou tábua do "mais", desenhamos um conjunto de colunas, na vertical, cruzadas com um mesmo número de linhas, na horizontal. Reservamos, como se diz em culinária, a linha do topo e a coluna mais à esquerda. Na primeira célula dessa coluna, que é também a primeira célula daquela linha, escrevemos o sinal "+" para nos lembrarmos que esta máquina é a tábua do mais. A partir da segunda célula e até à última dessas linha e coluna, escrevemos a sucessão dos números naturais: 1, 2, 3, ... até, suponhamos, ao 9. No quadrado interno a essas linha e coluna preenchemos, na segunda linha, 2, 3, 4, ..., até à última coluna; na terceira, 3, 4, 5, ... E continuamos o idêntico procedimento até preencher todo o quadrado interno. Está construída a máquina. A máquina destina-se a importar um par ordenado de números (chamados parcelas) e a transformar esse par num único número resultado (chamado soma). Essa transformação chama-se adição. 

Só resta ver como funciona. Para isso vamos precisar de um manual de instruções que será, mais ou menos, como o seguinte:

1. Leia o primeiro número do par ordenado.
2. Com um dedo, procure esse número na primeira linha.
3. Leia o segundo número do par ordenado.
4. Com outro dedo, procure esse número na primeira coluna.
5. Desloque simultaneamente os dedos, o primeiro para a direita, o segundo para baixo, até se encontrarem.
6. Leia o conteúdo da célula. Esse é o resultado.

Por exemplo, se o par ordenado fosse (4,6), o resultado seria 10. Há outras máquinas de processar "operações aritméticas" como, por exemplo, a tabuada da multiplicação. Embora o procedimento de utilização seja exactamente o mesmo, o "algoritmo" da tabuada de "vezes" seria diferente, dando como resultado 24.

Este desenho pode ser feito na cabeça de uma pessoa, num papel usando um lápis, na areia da praia com uma vara, numa folha Excel num computador, numa ardósia, em tabuinhas de barro, numa TI, num brinquedo de plástico, onde quisermos. Eu prefiro fazer contas de cabeça, com uma lenga-lenga que me ensinaram na primária e que é de elevada eficácia: "quatro mais seis são dez, quatro mais sete são onze, ...". Acabaram com isso, infelizmente, com o argumento de que "sobrecarregava a memória". Que cambada de cretinos!

Nós temos a cabeça cheia de máquinas virtuais. São essas máquinas que produzem todo o trabalho que se faz no cérebro ... E que não é só "intelectual"! Estas máquinas são importadas de fora (da cultura, da sociedade, dos outros) e adquiridas por "aprendizagem" num contexto informal ou de "ensino". Há outras que são construídas pelo próprio cérebro (de cada um). E essas é que são mesmo interessantes. E é dessas que eu me ocupo preferencialmente neste blogue: as minhas, as tuas, as dos gatos.



Começado em Altura (Algarve) e concluído em Telheiras (Lisboa).
A continuar no Tremontelo (Santarém).

16 de agosto de 2015

Recomeço

Passado mais de meio ano, encontrei a chave com que fechei este blogue e que me permitiu, agora, reabri-lo. Não vou perder tempo a congeminar por que ordem de razões andei afastado dessa chave, ou ela de mim, que isso de razões ignotas é matéria de director espiritual, de psicanalista ou de charlatão. E não sou nem me dou com nenhum deles.

O certo é que tive que recriar este blogue no Sapo onde escrevi algumas memórias da minha infância. Mas a coisa não colou de todo. Qualquer escrito carece de prefácio que o apresente e o melhor prefácio é sempre a colecção completa. A publicada, que exclui obviamente os drafts deixados na cave do blogue, as versões e revisões que desapareceram mutiladas pela constante metamorfose do exercício da escrita. Tenho a intenção de reaver e trazer para este local esses escritos, que agora se encontram, revistos e ordenados de forma diversa, num ficheiro word onde espero continuar e completar a minha autobiografia. 

O Tremontelo foi concebido para apresentar memórias do presente e não memórias do passado. Memórias do presente são registos de eventos actuais, impressões, vivências, num contexto de vida em que me debato todos os dias com a natureza, ou com o pouco que resta dela, no Tremontelo. Muitas vezes são reflexões, no sentido etimológico e óptico do termo. Quando é o eu que é reflectido, pode falar-se de especulação, de reflexo no espelho.

O eu não é o sujeito da acção da escrita, o autor, o agente que muita gente crê estar por detrás da escrita. É um erro muito comum, quase universal, essa ilusão. O eu só existe enquanto criado na e pela escrita. O eu é uma das grandes invenções do cérebro! Porém, quem age sobre o cérebro e o acciona é um organismo vivo, um indivíduo singular da espécie homo sapiens, que quase sempre se confunde com o eu, uma máquina virtual que é a sua réplica no cérebro. E para complicar as coisas, é o mundo material em que vive esse organismo que, por sua vez, o age. Daí o Tremontelo, o responsável último, o grande culpado de dar a este corpo cansado a tarefa de inventar esse eu e de lhe implantar memórias, de maneira mais ou mais orwelliana, mais ou menos estalinista.

Sive deus, sive natura. Não é uma coisa ou outra. É uma coisa e é outra, dois modos de existir. Fica assim, como apontamento. Lá voltaremos!

O tremontelo é uma designação antiga do tomilho selvagem. Tomilho genuíno do sítio, como genuínos são os seus gatos selvagens. O ideal seria tornar selvagem também este corpo. Se conseguir assassinar o eu, esse grande ilusionista.

Altura (Algarve).

1 de janeiro de 2015

Aonde leva o rio da vida?

Eu achava que era menino: pensava como um menino, sentia como um menino, corria atrás do bem estar e dos gozos imediatos, procurava chamar a atenção dos outros, acertava o comportamento pelo código da boa conduta, dentro da lei e dos usos, e de uma maneira geral nutria o sentimento de segurança que confere a cada um o pertencer a uma família, a uma cidade, a uma sociedade. Para completar esta premeditada e comprometida meninice, este jogo sujo de parecer um bom menino, acreditei, como me diziam, que até parecia um homem e, para satisfazer as expectativas universais, fiz-me um homem, creiam que me sentia ser um homem, com deveres e responsabilidades, jugo indispensável à quem quer permanecer menino apesar das aparências. Menino adulto, menino adulterado, mas sempre menino.

Quis a roda que preside às existências, sortear-me com o privilégio de um estado de saúde positivamente estável, e um vigor físico que ainda não cedeu aos caprichos da gravidade e da idade. As doenças conhecidas vêm de um passado remoto, alinhadas pelos genes com as gerações que me antecederam, e controlam-se a poder de comprimidos numa fuga em ziguezague como a do recruta no campo de tiro.

Eu achava que era um menino por dentro e por fora, nas aparições a mim e nas aparições aos outros.

Enquanto me estreava na meninice, sofistiquei na aprendizagem dos números e na agilidade das contas. Sou de uma geração que aprendeu com orgulho, e de cor, as tabuadas. E, a partir de ai, que se exercitou na práctica do cálculo mental. Era giro e até tinha montes de utilidade. As aplicações iam desde o controlo da colecção dos cromos das raças humanas até à gestão dos centavos com que os comprávamos. Não nos deixávamos enganar nos trocos e tínhamos sentido de poupança. Sabíamos o tempo que faltava para galgar cada degrau do crescimento e fazíamos rezas para que este passasse azinha, tempo era o que não faltava.

Havia os velhos, claro! Eles tinham o aspecto engelhado de quem se tinha cansado de acumular tanto conhecimento e tanta experiência. Chamávamos-lhes os avós, pessoas engraçadas que só elas sabiam contar estórias. Já eram crescidos e por isso tinham deixado de crescer. Iam ficar velhos para todo o sempre. É claro que nunca deixavam de trabalhar, naqueles tempos não havia reformas e trabalhar era tão natural para o comum dos mortais, como tomar banho todos os dias era para os ricos. Os velhos trabalhavam até poder. E garanto que podiam muito. Mesmo curvados e agarrados a um pau.

Continuo a achar-me menino apesar de um ou outro detalhe. O problema é que o diabo não está nos detalhes, o diabo está nos números.

E de que maneira! 

Quando era muito menino ia para a terra nas férias grandes. A terra distava a um dia de viagem por comboio da grande cidade e chegava-se lá cheio de foligem e empanturrado de uvas que se apanhavam quando a composição parava, para apanhar a lenha de alimentar a máquina, ou para apagar os fogos que esta espalhava por toda a parte. À chegada, a estação estava apinhada de gente: Era a família, um punhado de tios, mais de duas mãos cheias de primos e atrás de todos, claro, os avós.

Era gente engraçada, os avós.

Nasceram ambos no tempo do Senhor D. Luis. Ele pequenino, reservado, hirto, um rosto embigodado que era um espelho de autoridade. A pele tinha o tom da sépia como o das fotografias antigas. Olhava para nós com a compaixão que merecem os refugiados vindos da grande cidade: para eles, nós éramos todos amarelentos, enfezados, passa fomes, que íamos ali a apanhar ares, a comes e bebes e o sentido de toda aquela canseira era voltarmos rosados e bem nutridos devido, seguramente, à pureza do ar das serras, das águas nascidas das raízes dos pinheiros e dos alimentos que vêm da terra. Ela, alta, enxuta, rosto feliz e maroto. Fazia queijos a preceito e contava estórias do arco da velha. Eu gostava mesmo deles é sentia que era retribuído da mesma forma.

Hoje, que estou para aqui a achar-me menino, confronto-me com a crueldade dos números. É que já há muito ultrapassei a idade que eles tinham quando os conheci. 

Sem netos a quem contar estórias, sinto-me um menino fora do prazo. Sou velho, mas por calendário.

Por isso, conto estórias ao vento que passa...

      

25 de dezembro de 2014

Escrito hoje, porque só hoje poderia ser escrito.

Para me deixar maldisposto, rezingão e quezilento não há como os dias de natal. Digo dias, e não dia, porque a imoralidade já permitiu que a moléstia contaminasse os dias, se não as semanas, à volta dela. 

Poderia armadilhar 4 ou 5 argumentos válidos e robustos contra o natal, mas a razão não é para aqui chamada, que tem o seu lugar noutras ocasiões e noutras paragens. Falo dos sentimentos de mal-estar que a quadra me provoca. As razões são impessoais, e portanto discutíveis. Os sentimentos não são e ai de quem ouse discutir os meus! 

Os sentimentos provêm do acesso consciente às emoções, este tipo de comportamentos rudimentares gravados a escopro e martelo no nosso blackboard biológico muitos milhares de anos antes de andarmos a grafitar bisontes nas paredes das grutas. Ele é coisa que nos sai disparada muito antes do que vamos pensar quando houver tempo para isso. E fica aqui a ruminar, persistentemente, até putrescer gerando a má têmpera ou que se chama os maus fígados.

É essa a magia e o poder do natal: o de tornar-me azedo. 

Quando isso acontece, escrevo. A escrita é um poderoso lenitivo. Também escrevo, noutras alturas, quando estou bovinamente feliz.

Assim, fiquei a acreditar que a escrita nasce do corpo, das entranhas, das emoções. E que só mais tarde vem à cabeça buscar materiais e ferramentas de produção.

13 de dezembro de 2014

Como sempre

Acordo cedo, sem sono. Então, como sempre, rapo do iPad e ponho-me a deslizar o estilete, ora para a esquerda, ora para a direita, à procura de um interesse. 

Quando passeamos no campo, são os interesses que vêm ter connosco. Passeamos geralmente absortos nos nossos pensamentos que se encavalitam uns nos outros em ritmo lento, despreocupados, sem requisitos de ordem ou de rigor. A paisagem acompanha o nosso olhar e a nossa escuta pré-atentivamente. De vez em quando, o olfacto também. Porém, quando passeamos no campo, os interesses rompem o quadro, embora raro, e manifestam-se impositivamente.

Não é o caso do iPad. Os interesses pululam por lá, a competir por uma oportunidade. Estão alinhados em quadrícula como um pelotão em ordem unida. Dignos exemplares de brio e compostura. Um dia foram lá postos para quando houvesse tempo. E como tempo há pouco, e na maior parte dos casos é coisa que não há, os que resistem são os que vão escapando à delecção.

Quando se aponta para o interesse na maquineta, ele abre-se imediatamente, como uma flor a desabrochar ou uma vagina em volúpia aceitante. E penetramos o interesse e ocupamo-nos dele. No entretanto, como um ladrão à socapa da noite, o sono instala-se de novo sorrateiramente. Como sempre.

10 de dezembro de 2014

A descansar de outras escritas

A descoberta desta manhã não merece um único qualificativo. É uma pura descoberta, um "ah!" prolongado e suspenso apenas. Quase que não merece descrição, a única possível sairia minguada, desconexa, incompreensível. Por isso, passemos à frente! 

Os dias continuam iguais a si próprios, agora secos e frios. Também já foram iguais a si mesmos, mas chuvosos e escuros. Pergunto-me se os dias são iguais a si mesmos ou se são o mesmo dia, sendo o dia de hoje o dia de ontem, sendo a noite a separá-los uma ilusão, uma sombra um pouco mais duradoira a ocultar a luz do sol, desse astro luminoso que nos impõe o tempo. Afinal, a vida é apenas um dia.

Isto é aqui, no meio do campo, onde as árvores se conservam de pé e os passarinhos piam de manhã. Os gatos esperam rotineiramente a distribuição das suas rações para depois escolher um lugar para dormir, um lugar ao sol, claro!

A parafernália de instrumentos electrónicos plantada neste ermo bucólico faz irromper com um estrépido brutal e explosivo a insensatez do "mundo" de lá de fora. É um filme mau em todos os sentidos. Cabeças degoladas pelo fanatismo islâmico, o assassinato das classes médias, a política de sarjeta, o sofrimento da pobreza e da doença colectivas, os elementos em fúria, a estupidez e a ganância dos banqueiros, a teimosia de deus e dos seus acólitos em amarrar a vontade das pessoas e em ceifar-lhes a inteligência.

Aprendi ao longo da vida a acordar à justa no início dos pesadelos. É mais difícil desligar a televisão ou o iPad. A tentação é não os ligar. A vida assenta de novo. Experimentas a cumplicidade felina. Ave, Farrusca! Ave, Agnus! Ave, Peto! Ave, Rutschkinha! Ave, Amarelo! Ave, Cenoura! Ave, gatos anónimos do meu quintal!

E instala-se o sentimento da vida, o passar lento desse único dia. Experimentas a duplicidade do tempo. Um tempo assimétrico que conduz num só sentido, arrastando consigo a elasticidade e a resiliência do corpo. Um outro tempo simétrico que, chegado a um ponto de que não te dás conta, esbarra numa barreira invisível e te inverte a direcção fazendo-te sentir muito jovem, depois criança, cada vez mais criança, cada vez mais perto do mistério, o único mistério que há no mundo, o do nascimento, o do dia em que despertou a consciência e em que criaste a totalidade do que existe.

2 de agosto de 2014

O verão frio do nosso descontentamento

As coisas são, mas não existem; o homem existe, mas não é: projecta-se. As coisas são e não o sabem, e o ser das coisas só se revela na abertura, na exposição que é o existir humano. O existir humano cuida das coisas no seu ser, é o seu jardineiro. A essência do existir é o tempo. O tempo traz as coisas à presença do humano e fá-las perdurar na memória. A fala, bem como a escrita, introduz a narrativa nas existências e confere-lhes identidade. O idêntico pode afirmar vezes sem conta " eu sou aquele que sou" e cobrir a sua face com múltiplas máscaras, e descrever múltiplas facécias e experimentar todo o tipo de cenários e vestimentas. A História é uma rede de autobiografias, a Actualidade o seu palco. E a contínua representação retorna eternamente as coisas à sua essência.


 

Os quatro petizes cabriolam infantemente quando lhes disponho as papinhas. Agora já me espreitam a um, dois metros de distância, mascarados por detrás de um qualquer semi-obstáculo visual. Rabo escondido com gato de fora, ironizo. Chocalho ruidosamente as apetecidas pepitas no saco de papel plastificado. Antes, fugiam a sete pés os sete-vidas. Agora, já se vão pavlovianamente salivando e aproximando. São seis horas, ainda está frio e não parece que se vá cumprir a previsão de chuva dos metereologistas. Pode ser que me engane! Mas a possibilidade de um engano dá o colorido das nossas vidas e o poder de continuar a dar palpites.

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23 de junho de 2014

No limiar do verão

O verão instalou-se novamente nos anos da nossa vida, mas, desta vez, veio acompanhado de tempestades tropicais. Estação a suceder-se a estação, simulacro de Via Sacra. Nada acontece: Ontem, o encontro de velhos companheiros de empresa. Já extinta como pedem os tempos, não fora a lembrança que a retirou dos escombros. As empresas nada são, apenas marcas. As pessoas empreendem, fazem-se coisas, a obra aparece. Depois há os tiques de cada um. São como vozes que procuram concertar. Dá-se a isso o nome de cultura de empresa. O que sobra, ao fim de alguns tempos, são sempre e ainda os tiques de cada um que, no reencontro, esperamos confirmar. Porque nada de novo acontece. Hoje, o mundial, a desesperante humilhação de um país que teima em pensar-se grande na teimosia da sua pequenez. Chovera, quase toda a manhã. É mais que certo que, amanhã, choverá. E nesta certeza de que o tempo vai ser incerto, é tempo de nos adaptarmos às incertezas dos tempos que virão.

Em trânsito por Lisboa, a 22 de Junho.

12 de maio de 2014

O silencio

Nesse afã de dar vida aos detalhes não há exigência maior do que esta de dar voz àquilo que não a tem: o silêncio.

Não me refiro ao silêncio cósmico. Se a nossa imaginação mergulhar nas profundezas do real verá um número incontável de esferas rodando sobre si próprias ou cirandando em torno umas das outras; se recuarmos para um ponto de visão afastado e ensombrecido, essas gigantescas esferas convertem-se em grãos de pó quase invisíveis mas, agrupando -se, nas massas leitosas que sabemos ser galácticas. E a todos estes objectos celestes vemo-los a girar encaixados uns nos outros como rodas dentadas engrenadas umas nas outras. E a experiência das coisas mecânicas do nosso dia a dia leva-nos a crer existir aí, para uns uma ensurdecedora e tonitruante cacofonia, para outros, mais crentes numa ordem pre-estabelecida, uma harmonia celestial. Mas isto não é música, é poesia. O universo é importando-lhes as deixasmudo. E mais: é surdo.

Aqui no Tremontelo reina o silêncio. Não que não haja sons. Por exemplo, ao longe, para nordeste, ouve-se o ruído do motor de uma máquina agrícola. É o silêncio que permite ouvi-la, de outra forma estaria mascarada por detrás de outros sons que se lhe sobrepunham e a incorporavam. À minha direita, num sobreiro enorme, um pássaro qualquer ensaia os seus trinados de uma forma tão meticulosa como a de quem esfrega os dentes à escova. Na rotunda dos cedros, em cima do carvalho em tempos mutilado pela tempestade, outro executa um solo policromático com a seriedade de um performer operático. Um pouco por todo o lado, a passarada assiste-lhes as deixas. O galo faz intervenções esporádicas. A abelha ciranda na sua azáfama zumbindo. As moscas mantêm aquele barulhar chato e irritante que desperta em automático o chicotear das caudas das vacas. Tudo isto é silêncio, nada perturba o trabalho, nada desvia a atenção, a irresponsividade é tão grande que chega a dar em sono.

Eis que, de súbito... 

Isto é, claro, uma frase desgastada, sem um sentido reflectido, que tem um papel análogo ao das frases feitas musicais dos filmes de terror da terceira divisão: preparar o susto. O que resulta: uma vez o susto preparado, a pessoa assusta-se porque foi preparada para se assustar. A nossa política doméstica está cheia destas coisas. Frases ocas, polidas à superfície. Ver a retórica de Passos Coelho, um clássico de marketing político cheio de estilo. Este prepara o susto e logo o alívio. Às pessoas dá-lhes aquele baque que suspende a respiração e põe o coração a badalar à doida. O sofrimento sente-se. Não é logo claro, sê-lo-á brevemente, nas contas, no cheque mensal. Quando há, claro. Depois o alívio. É a economia que está a melhorar e mostra-se os pequenos incrementos, ocultando o fenómeno de bola de pingue-pongue que saltita quando bate no solo e vai esmorecendo até morrer. São os mercados que concertadamente baixam os juros dizendo que somos dignos de crédito, ou quase, o tempo o dirá. E afiam a dentuça para a enterrar no pescoço da vítima. Mas alívio virá, está prometido, como o Messias, o D. Sebastião ou o Armagedeão. É complicado saber para quando, é uma questão de datas e é preciso saber interpretar os números, ou é uma questão nublosa e é preciso dominar a previsão meteorológica. A economia não é uma ciência certa, é uma arte de extorsão certeira.

Eis que, de súbito... 

O silêncio desfaz-se, a atenção dissolve-se, o ouvido apura-se. É preciso recompor o corpo na cadeira, é preciso desviar a cabeça na direcção que nenhuma decisão autónoma impôs. De súbito, um barulho, apesar de diminuto, um barulho, a recusa gratuita e ostensiva do silêncio. Olhei, claro, e vi. Duas folhas secas de sobreiro rodopiavam ao vento no chão do alpendre. Pareciam loucas, um casal apaixonado ou em transe místico, mas claramente que seguiam cegas a ordem natural das coisas, sem emoções, sem sentimentos, sem desígnio próprio ou alheio. 

A Farrusca deve ter sentido a minha inquietação. Despegou do sono metafísico a que se vota por tempos prolongados, veio sorrateiramente na minha direção, esticou a cabeça para a afagar e começou a ronronar.

Voltei ao trabalho, a Farrusca ao seu poiso e o silêncio reinstalou-se.

7 de maio de 2014

Uma reflexão -tão instantânea quanto o pudim.

Dizem-me que escrevo demasiado a ponto de matar de tédio os meus leitores. Confesso-me culpado dessa acusação. E devo uma explicação: na vida, que entendo ser uma mão cheia de nada, só interessam os pormenores. E é porque há alguns, bons e maus, que excitam a minha atenção, respondo escrevendo sobre eles. Se sai curto, entendo que é punheta: esfregar abrasivamente o membro (mental) até jorrar uma breve cuspideira de palavras. Gosto que saia longo, profuso, demorado, com refrão, como no sexo tântrico. Assim, com palavras, devolvo à vida, que é a eternidade num instante, a atenção que merece.

17 de dezembro de 2013

Veio o tempo seco e com ele o apetite para amanhar a terra. O problema tem sido as temperaturas negativas durante a noite (cheguei a acordar por volta das sete com a temperatura no exterior a -5ºC e a paisagem coberta de geada).


Não que me arrefeçam, que, para remédio, há os edredãos e as mantas, mas porque me obrigam a madraçar durante a manhã, em diversas e aprofundadas leituras. Nestas alturas, o meio dia não é o fim da manhã mas o seu prolongar na rua. O almoço só pode vir muito depois, se o pequeno foi tardio e reforçado, e há que aproveitar o calor abrasador do sol enquanto não esmorece. Após o almoço, quase por volta do pôr do sol, fechar as janelas exteriores para não deixar escapar as ondas eletromagnéticas para as estradas alcatroadas da noite, e preparar a salamandra. O dia lá fora acabou e agora vai recomeçar cá dentro, com trabalhos domésticos, pequenas reparações e muita leitura.

Dou-me conta que, os livros que adquiri nestes últimos anos, não vou ter tempo para ler deles senão uma pequena parte. Tive quinze anos para os adquirir e não vou ter quinze anos para os ler. Agora, estou muito seletivo. Na literatura, para os autores que, em diferentes fluxos e refluxos de consciência, diferentes temperos de sentimentos e emoções, diferentes simbolizações arrancadas das memórias autobiográficas e da história coletiva, abordam a identidade e a alteridade do eu e as projetam na sua cidade: Pessoa (e as suas pessoas), Joyce, Kafka, Pamuk, Proust. Nos domínios da história, da espiritualidade, da filosofia, da física, da biologia evolutiva e da ciência cognitiva, os meus interesses centram-se em várias infeções virais da consciência: a Pessoa, o Mundo, Deus, a Sociedade, a Cidade, a Economia, o Ambiente, a Crise, a Decadência. A lista não é exaustiva e vai-se recompondo há medida em que revejo e retoco as notas para o meu livro sobre a consciência e a emergência dos valores de ordem superior, o livre arbítrio e o suicídio. Novas conclusões absolutamente espantosas das releituras de Damásio, Chalmers e Metzinger, de Espinosa, Nietzsche, Heiddeger, Arendt e Onfray, de Darwin e Dawkins, e de muitos outros. A leitura simultânea permite alinhar ideias que antes desfilavam em fileiras separadas. Surgem ideias, novas não, mas recentes, como as antigas galáxias que só agora se dão a ver porque a luz que irradiaram passou ziliões de anos a atravessar o universo para vir até nós. A minha pesquisa prossegue com a leitura dos textos sagrados (se reconhecidos como tais), ou de meros documentos históricos, que evidenciam os mecanismos (neuro)cognitivos da criação de deus e o seu papel estruturante das civilizações históricas fundadas na agricultura e urbanização, e a forma como se apoderaram dos nossos cérebros e os infetaram.

A noite chega sempre sorrateira e demasiado cedo para o cérebro exaltado. Que se abandona num qualquer sofá para só acordar nas vésperas da madrugada a tiritar de frio e a pedir a cama.

Agora, a chuva regressou, uma humidade rala e ensombrada. Os ritmos são outros, mais adentrados na casa, a apetecer escrever.

22 de novembro de 2013

Reencontro



Tal não me acontecia há muito: uma calanzice inexplicável.

Após uma noite de sono curta, acordo com as primeiras clarezas do dia novo. Uma aclaração modorrenta de dia empastelado. Abro as portas de par em par e sinto a Farrusca pular do seu poleiro almofadado por cima da carcaça da velha lareira a pellets, que estorva no alpendre mas dá guarita à peluda que, no seu posto, me vigia as entradas e saídas. A cauda erguida, é sinal da dopamina que lhe endoidece o cérebro com a expetativa a realizar-se de comidinha e afagos. Põe-se a ronronar sabendo, de saber bem animal, que a oxitocina em breve me invadirá em golfadas, como a que sentem as amiguinhas que se encontram, também para descoser nas costas das outras, mas sobretudo pelo prazer que tiram de estar. Com o Agnus é outra coisa: Põe-se à distância com uma enorme carga de serotonina a desafiar-me o poder do género e do estatuto. Problema de machos, sobretudo de alguns com muitas coisas pouco ou mal resolvidas, que o torna um toleirão, com o sorriso cínico do jovem que de jota, num jato, se tornou primeiro ministro. A paparoca só é distribuída após a abertura das três pares de portadas do alpendre. Com a Farrusca fazemos aquele jogo em que ponho a mão a tapar o seu comedoiro cheio e ela me dá marradinhas afetuosas para a afastar. O Agnus observa à distância. Só mais tarde, a Pantera aparece a correr. A Laranjinha essa fica-se, como as velhotas da aldeia, arrimada à porta da cozinha - maneira de dizer. Nessa altura, já ganhei para o dia e, para não ganhar para sustos, lá me vou ao lazartan, que tomo com um kivi muito maduro e um copo de água. Depois, acendendo a máquina do café, já realizei tudo o que há de importante de preparação para o novo dia.

O que houve hoje foi um desacerto completo da rotina quotidiana. A chuva, já na véspera, apanhou-me desprevenido, encharcando tudo o que se abrigava sob o céu antes descoberto. O pio foi não ter lenha recolhida para me alimentar a salamandra. De manhã deu-me um não sei que estado de alma que me deixou mole e a querer voltar para a cama. Com o iPad travado em portrait e três almofadas sob a nuca, lá me fui alienando em postagens e repostagens, gostos e não gostos, comentários e descomentários, naquele desinteressante perder de tempo que é o Face, a religião da modernidade, ou pósmodernidade, tanto se me dá, que é como a diferença sem interesse entre a menopausa e a prémenopausa, pois se a essência da religião é o re-ligar, nunca nada antes religou tanto como religa o Facebook. Ora et labora, pois sou o bom "monachos" do presente, que lê o jornal matinal e despacha as notícias para o face, tal como o monge do baixo império ou da alta idade média despachava o trabalho da pena para a oração mental e a contemplação. À hora a que escrevo já deveria ter feito horas de trabalho de pá, enxada, ancinho e forquilha. Ontem, com sol ainda, se bem que a meio gás, lá consegui avançar na limpeza dos meus jardins e hortas e ainda deu para armazenar alguma vitamina D, apesar da minha tez morena, que se deveu ao cruzamento de todas as raças mediterrânicas, e da escassa radiação visível. Hoje não dá. Os terrenos estão encharcados bem como as botas de trabalho.

Quando os astros não deixam andar lá por fora, aproveito para limpar as casas de banho, aspirar e arrumar a casa, passar pilhas de roupa a ferro, que bom que é agora no tempo frio, fazer marmelada ou compota de pêra ou abóbora, na cozinha, ou ocupo-me a organizar a minha biblioteca, a completar os meus trabalhos de taxologista vegetal do Tremontelo, a ler ou a escrever. Instalações elétricas e reparação de móveis são coisas que fiz há pouco tempo, mas que tive que interromper por falta de materiais. Antes de comprar, é preciso planear e registar convenientemente as medidas, as formas e as qualidades do que se precisa.
Sou maníaco do trabalho e durmo pouca coisa. Hoje, foi um desvario completo, um grande regabofe. Levantei-me à hora do grande almoço para tomar o pequeno. E vim para aqui até agora, momento em que preparo a segunda refeição, sobe escadas, desce escadas, a luz que se apaga e lá se vai o computador, atender a campainha histérica de um alarme do face ou do gmail, o stress das pequenas coisas que incendeiam a vida de um sexagenário.

As interrupções são constantes. Como, por exemplo, esta agora de verificar que o meu guisado de ervilhas não pegou. Por isso, estou penosamente a tentar focar-me para atinar com a verdadeira razão que me trouxe aqui.

Já não venho aqui há muito tempo - é fácil verificar, tanto que me esqueci da senha. A memória acudiu-me à ponta dos dedos quando comecei a martelar o teclado.

Fui ver as últimas coisas que tinha escrito: andava numa de cartas. Agora, lembro-me porquê e o que pretendia caso não tivesse interrompido. Mas já não interessa. Tanta coisa aconteceu entretanto. E tanta coisa má. Pois não pode haver muitas outras coisas tão más como assistir aparvalhado à destruição impiedosa do meu país. Apesar do CR 7, que ainda assim tem o condão de nos levantar o moral.
Embora não se tenham apercebido, neste exato momento acabei de almoçar, ainda cheiram na chávena as últimas essências do café, a única substância que divinizo e adoro ritualmente. É uma perda de tempo voltar a ler o que já estava escrito que se justifica apenas por ser em benefício do putativo leitor. Pois, houve, um hiato grande que devo compensar em pouco tempo.

Depois da Universidade, um grande investimento no Tremontelo. Dois anos fora e aquilo já parecia mato. Mãos à obra, é o meu pensamento favorito nas alturas de tormenta!
O levantamento de todas as espécies vegetais, endógenas e exógenas, é trabalho para o resto da vida. Estamos nas angiospérmicas, que é obra. A recolha é sobretudo fotográfica, que os procedimentos académicos são dispendiosos em material e tempo. Algumas folhas de recorte agradável ou exótico vão a mumificar para dentro de livros, onde empalidecem e murcham com o cativeiro. Desconhecendo por completo o assunto, pus-me à cata de uma taxonomia que me servisse para auxiliar a catalogação.  Lá descobri o APG cujas 3 versões conhecidas estudei obsessivamente. Depois, o trabalho de construir uma base de dados, trabalho que ainda continua a ser feito,  para substituir mais tarde as worksheets com que tenho trabalhado.

Daqui sou levado a evocar a minha ida a Massachusetts. Gostei muito da gente com quem convivi, da beleza inesquecível de Boston e Cambridge a bordejarem as margens do Charles, dos passeios a pé num mar de verde e de ruas a ressentirem a tília. Também se come e bebe bem, sobretudo se tivermos a sabedoria de encontrar um bom restaurante português, malgré os galos de Barcelos e as loiças de barro negro de Molelos (irra que até rima!).

O que mais me atraiu aí, e que me levou lá várias vezes apesar da distância ao sítio onde vivia, e sem ter conseguido esgotar o que queria, foi o Arnold Arboretum em Jamaica Plain (www.arboretum.harvard.edu/). 
Sobretudo, o que me deu água pelas barbas, a sua maravilhosa coleção de rosáceas, a que falta certamente algumas das espécies que proliferam copiosamente no Tremontelo.

Uma outra empreitada grande foi trazer para o Tremontelo parte da biblioteca de Lisboa (até agora cerca de 1600 obras) e organizar logicamente uma biblioteca dispersa geograficamente. Mais a contrução de uma base de dados e a sua alimentação com, até agora, cerca de 4500 volumes. É obra! A par disso, obras mesmo ... de carpintaria e eletricidade. Que tão pouco espaço tão cheio, precisa de muita prateleira e suficiente iluminação. Isto requer mais formação profissional: no verão, a arte a aprender foi cortar, dobrar e tornear tubo hidronil, trabalhar com uniões, junções, tês e joelhos de 2 ou 3 vias, curvas e tampões, válvulas de corte e segurança, passadores de esfera e manómetros de pressão, tudo a macho ou fêmea; este outono, virei para a tricotomia neutro-fase acompanhada da terra bicolor, com as cores do Brasil que isso sim é terra! Os projetos não são já aquelas redes tipo mapas do metro com que canalizamos a água, que aqui requer ainda mais economia alcançada com boa utilização das caixas de junção. Os circuitos elétricos, como um simples lacete para estabelecer um interruptor à altura da mão, são de uma simplicidade e de uma beleza chocantes. Tudo isto é obra de desenho, por isso continua a arte de desenhar jardins. O cavalete é que nada: lá está a apanhar teias de aranha e a suportar mochilas de portáteis defuntos.

Depois há as leituras. Sobre quê? Ficção científica, que ainda falta ler algumas dezenas de títulos da Argonauta. Pesquisas sobre deus, o monoteísmo e os povos semitas. Ando a precisar de ir aprender aramaico que não me conformo com a leitura dos evangelhos traduzidos pelos capuchinhos ou a bíblia de Jerusalém em francês. Leituras sobre espiritualidade: depois de Francisco de Assis, Teresa de Ávila e João da Cruz, agora a vez de Alçada Baptista; agora espiritualidade cristã depois de inúmeras leituras sobre a Wicca. Física das partículas e astrofísica. Banda desenhada. Literatura contemporânea (a ler Pamuk). Filosofia (Ética, de Espinosa, a preparar-me para Arendt). Muitas pequenas leituras de Garden e de Petite Cuisine. E Gatos, muitos gatos...

Depois das leituras, as escritas. O tema é o de sempre, identificar os parasitas dos nossos cérebros humanos, particularmente aquele com que privamos mais: o Eu. Identificá-los, descrevê-los e conjeturar sobre a sua génese e funções. Mas isso não revelo aqui ... nem ali. O objetivo é conhecer a doença e administrar-lhe a terapêutica.

Finalmente os gatos. É como a gente: nascimentos, casamentos e funerais. Só que o filme leva menos tempo a correr.

8 de março de 2013

entregar ao nada na posta restante do planeta

Escrever não é o meu forte atualmente. Até aqui, escrevia cartas que enrolava no interior de uma garrafa que lançava ao imenso mar da blogosfera. É aquela ideia muito antiga de que há, no infinito do universo, criaturas inteligentes capazes de decifrar os nossos sinais e suficientemente conscientes para entender os nossos gritos de alma. As minhas cartas destinavam-se a desconhecidos bem mais perto, situados na infinitude da nossa proximidade. Mas, ao ponto a que isto chegou, escasseiam os singulares humanos capazes de edificar um lugar nas suas existências, aptos a colocar máscaras que individualizem pessoas suportes de ação e prontos a resistir ao engolimento da realidade. A blogosfera foi arrasada pelas redes sociais, cemitérios da comunicação, do bom gosto e do património civilizacional.

O deserto urbano estende-se por todo o planeta injetando todo o tipo de drogas que contaminam as sãs consciências e liquidam as vidas. Cada vez mais reduzem-se as possibilidades de resistência. Os derradeiros recursos tornaram-se mercadorias. O planeta está à beira da falência. Então esta que venha fulminante e depressa para levar também consigo os abutres que a precipitaram.

Vou, então, escrever cartas para o nada, o vacúolo desta porção do sistema solar que será limpo pelas defesas do universo eterno. Resistirei enquanto puder no meu baluarte que é o Tremontelo, que é ainda um lugar, um sítio para acolher pessoas e não a um ecrã de virtualidades. Onde a realidade é ainda real, porque resiste ao homem e é-lhe indiferente. Onde as pessoas, humanos e gatos, ensaiam máscaras e representam. Onde as plantas se batem por solo, água e sol. Onde a passarada e as esferas celestiais registam os seus cantos no interior do silêncio imperativo.

Passei uns tempos, estes dois últimos anos, a decifrar na Universidade os mistérios do conhecimento, esse estranho processo que nasce e se alimenta nos cérebros, sejam eles animais ou artificiais. Fiquei na dúvida se o conhecimento não ocorrerá também nas plantas, seres aparentemente destituídos de cérebros, pelo menos como nós os entendemos. Acho, por puro palpite, que as plantas têm inteligência suficiente para construir conhecimento. A ideia não é aberrante. As plantas diferem dos animais pela ausência de mobilidade e a sua motilidade apenas as adapta ao sítio onde se enraízam. Quando muito, são conduzidas passivamente pelas marés ou os ventos e os seus pólenes são transportados pelos insetos, passarada ou nos pelos dos mamíferos. De resto, constroem as suas existências sedentariamente, o que as impossibilita de terem um corpo que as individualize.  Sem um corpo, e sem cérebro, não têm um eu. Primeiro, porque não têm um cérebro que possa produzir o eu. Depois, sem corpo, o eu não representaria nada. Logo, as plantas também não têm consciência. O grande problema é se um ser artificial, puro software ou um mecanismo autónomo, um robô, pode ter uma consciência artificial. A questão, a que ainda não é possível dar uma resposta cabal, mas existem indícios de que sim, conduz a um intrigante mistério: uma prunus spinosa ou um rubus fruticosus não sentem dores, não têm orgasmos, não vêm cores, não percecionam objetos, não fazem planos nem decidem executar ações, o que em princípio é possível, em condições que ainda hoje não são claras, a um robô.

O grande mistério ultrapassa, em várias ordens de grandeza, os grandes pequenos mistérios: afinal, para serve a consciência na economia do universo? Sobretudo a consciência alargada, capaz de viajar no tempo e de formular mistérios, espantos e admirações. Porque não há de o universo limitar-se a ser como é, sem ter o incómodo da carraça humana a questionar a sua natureza? Um questionar efémero, instantâneo e mortal. Todavia, um questionar.

Afinal, uma carta não é senão isso: um questionar. Poderia continuar no Tremontelo a podar, montar, plantar, enxertar, regar e manter a consciência reduzida ao nível da sensação de afago do pelo de um gato ou da dor de um espinho encravado na carne. Todavia, escrevo. Porque questionar é necessariamente uma interpelação. Mesmo quando interpelamos o nada.

27 de outubro de 2012

cartas registadas com aviso de receção

Vou muitas vezes ao Tremontelo só a ver do correio. Ausências prolongadas levam à pronta saturação da caixa. A gente abre-a e atrás da portinhola vem um atropelo de cartas, de avisos, de papelinhos de ofertas de trabalho e toda a inutilidade de panfletos do Continente, do Aki, da Staples, do Mestre Mako, do Pingo Doce e de todas as catedrais e capelas do consumismo escalabitano. É uma trabalheira a separação da papelada em dois molhos no outro assento do carro. Depois, o acartar para o contentor azul. E vai-se tornando hábito!

O que mais me assusta são os avisos, sobretudo quando vêm das Finanças, agora promovidas a Autoridade Tributária. É um sobressalto que dura todo o fim de semana porque a carta só pode ser levantada na segunda-feira. Há dias recebi um aviso de outras proveniências, de uma sigla imprecisa e desconhecida. Segunda feira de madrugada, fiz a barba, duchei-me e desenfrasquei a colónia para cima do corpo, vesti roupa de ir lá fora, ao mundo, e pequeno-almoçado me fiz à estrada até ao edifício da Junta onde funcionam os correios. Conversa do costume, que é de circunstância, que assim e assado, que dá e que tira, e o tempo que está, a saída para a crise que não tem saída, e o desgoverno do Governo, a lata deles - porque é esta a condição do ser humano: não ficar calado quando se encontra outros seres humanos mesmo que não haja nada para dizer porque falar não é comunicar, é apenas humanizar e o melhor que há a dizer é redizer o que já está dito como desfiar avé-marias no rosário de contas. A dizer ou a ouvir, a gente estende o papelinho sem dizer nada porque as senhoras já sabem que é para levantar. Antigamente pediam o bilhete de identidade e assinávamos em dois sítios que tinham as cruzinhas que as senhoras punham para a gente saber onde assinar. Para meu espanto desta vez a coisa não foi assim: deram-me um papel com quatro letras e três algarismos, tudo garatujado, distorcido e misturado de modo que não fizesse sentido algum, e pediram-me para copiar num determinado lugar no aviso. Fiquei para ali especado, sem noção do tempo em que fiquei assim. A menina dos correios disse-me com um sorriso que parecia gentil: "é para termos a certeza de que não é um robô".

25 de outubro de 2012

Cartas de outono folhas caídas

Como as folhas do plátano do Tremontelo que tremeluzem ao mais pequeno sinal de brisa e se desprendem, rodopiam até estabilizarem depositadas no chão. Se não se atenta bem, dá a impressão de se encher o plátano de passarada em divertida algazarra. Não é esse o caso, é apenas a festança alarve do folherio em trepidação fractal.
Vai longe o tempo das últimas cartas de correio. Chamam-lhe os saxónicos de terras de sua majestade o snail-mail, a correspondência a passo de caracol, em despropositada oposição a este correio que é de correr, de cavalos que se revigoram nos postos, e por isso se chamava postal. Postar hoje é outra coisa: é carregar num botão que tem escrito "enviar". E aquilo lá se perde no espaço virtual para reaparecer no outro canto do mundo, tão longe como aqui ao lado, retomando a forma original e, talvez, o sentido.
Pois há bem mais de um ano! A fidelidade aos lugares não é garantia do retorno, é apenas uma condição da saudade. Na era da globalização neoliberal, o eu precariza-se e migra. Somos tão migrantes que até emigramos de nós próprios. E somos enviados mundo fora como se fossemos cartas circulares. Tombamos como folhas no outono da História.

20 de julho de 2011

Cartas de Verão

Tenho uma mania que me vem da infância: gosto de cartas do correio. Não daquelas de obrigação, que se manda a intervalos regulares para as pessoas certas, que nos esperam nos lugares certos ou nos recetáculos certos, não! São as que nos fazem subir todos os dias a rua a esperar o carteiro e alimentam aquela incerta esperança se hoje alguma coisa para mim. O carteiro é o incontornável da esperança e da conformação. A gente sempre se conforma porque amanhã há outros dias, tem sido sempre assim. E o carteiro tem a sabedoria que recebe e distribui da mesma forma como recebe e distribui cartas. É a sabedoria da atenção aos sentimentos. Mas o carteiro já há muito tempo que não vem: foi tragado pela tecnologia do correio eletrónico.

Hoje a espera - a que felizmente ainda há - deve-se às fragilidades da tecnologia: tempo de processamento e quantidade de memória. Mas a espera é retórica. Cartas eletrónicas lá chegar chegaram. São aqueles títulos a negrito, sinal de que não foram lidas, provavelmente cartas das "novidades" comerciais, a anunciar fabulosas oportunidades. Morreu a espera porque exagerou a superabundância. Estar ligado já não é virtude, é vício.

Tenho saudade de extrair a vapor de água os selos das minhas cartas na noite da cozinha ao fundo do imenso corredor que dava do meu quarto em cujas janelas olhava as estrelas longínquas e por onde fui formando, caminhando sempre mais um passinho curto na noite profunda, uma ideia do infinito.

11 de março de 2011

Carta sem destinatário (1)


Andamos nisto...assim, os sintomas à mostra, às vezes uns lampejos de felicidade / imbecilidade, tudo indiscernível, o dia-a-dia a conta-gotas, a sabedoria das horas negras, sabor a óleo nas engrenagens da mente, a inquietante separação e o mútuo afastamento do aqui dentro e do lá fora, a saudade e o desejo do músculo dorido na contracção do trabalho da terra, o bate-bate da drogaria nas sinapses da vida ... tudo muito sem sentido, tudo não sentido.


Lá fora parou de chover, mas continua a haver noite, desfilam ricaços na passerelle do Forbes e a crise não desampara a loja. As Parcas também o são, a crise chega a todos. Nona tece o tecido e a textualidade da vida, Décima a luxúria. E a Outra espera, diz-se que tem a tesoura de Occam e que um dia há-de cortar o fio, a eito, como se tudo fosse erva daninha.


Os filhos da geração rasca são uma geração à rasca. Pudera! Pior é ser ceifado na idade das promessas, como os jovens líbios, com os olhos marejados de areia e pó do deserto. Talvez sim, ou talvez não. A indecisão é a única garantia de acertar com a verdade, o acerto involuntário.


Eram cinco como nós, os corpos alinhados guardavam as suas ausências. Afogados no Tejo, tínhamos dez anos. Ouvi falar, pela primeira vez, de eças. Para mim, Eça era o Queirós, que ainda não tinha lido mas de quem se falava muito. Li-o mais tarde, vezes repetidas, um dos poucos que me acompanharam vida fora, como o Aquilino e o Bernardo, os de cá.


Lá fora há temperatura, não sei se quente, não sei se fria. Cá dentro, só sei que há temperatura lá fora.


Naquela noite de processão de corpos, de vigília de mentes atemorizadas, despertou-me a puberdade. Descobri as borbulhas e os pelos que despontavam no espelho todas as manhas, passadas as erecções espontâneas, os lençóis amarfanhados e os sonhos desconexos em noites infindas. Andávamos à rasca e não sabíamos ainda que éramos uma geração.


Os jovens líbios lutam por ideais e morrem para nada. A morte não deixa nada. A gente morre e leva o mundo todo connosco.


Da minha janela vê-se o que há lá fora. Eu não sei se o que vejo há lá fora, mas vejo como se houvesse lá fora. Ver é como falar: a gente diz palavras e tudo começa a existir, mesmo sem a gente saber se o que diz existe. Aliás, ser, estar, haver, existir, permanecer são palavras que dizem o que é, o que está, o que há, o que existe e o que permanece. Mas sem sabermos se o que é, o que está, o que há, o que existe e o que permanece, é, está, há, existe ou permanece.


Andemos nisto, pois ...

29 de janeiro de 2011

Um livro aberto, versículo 9.

Era um modesto livro de culinária de um género de segunda, da chamada "comida do mundo". Sempre aspirara a ficar próximo das masterpieces da arte. Mas a tal não lhe chegou o engenho. Agora, esquecido na mais elevada prateleira das imensas estantes da biblioteca, no local dos ditos livros práticos onde a coruja se alcandorava às vezes a piar, murchavam-lhe as entranhas de raiva e de comida requentada. Aproximou-se da beira, fechou os olhos e entregou-se.

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12 de janeiro de 2011

Um livro aberto, versículo 8.

Era um livro em segunda mão. Depois, passou por outra, e outra, e outra mão. Às tantas andava nas mãos de toda a gente. Depois passou de boca em boca e acabou por andar nas bocas do mundo.

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6 de janeiro de 2011

Quadros (10)

A gata tinha duas preocupações no que respeitava à cozinha. A primeira, óbvia como se verá, consistia em proporcionar a cada membro do acampamento uma alimentação adequada às necessidades diárias de cada um sem pôr em perigo a reserva de recursos estimada suficiente para os dois dias seguintes. Competia a outros a reposição do armazenamento de água, lenha, alimentos e condimentos. A segunda, por mais estranho que pareça, era a de manter todos afastados da área da improvisada cozinha garantindo-lhe a exclusiva soberania sobre um domínio que a enchia tanto de prazer como de prestígio.

Porém, agora parecia tresloucada com a súbita notícia de que iria ter mais uma boca para alimentar. Ainda por cima de uma criança. Se os bípedes têm uma alimentação estranha e complicada, como não será a de uma cria. Possivelmente precisaria de leite e não havia nas redondezas uma fêmea que o proporcionasse. Que a boneca de trapos tinha empranhanhado, já toda a gente o sabia; mas o seu sistema mamário só iria estar preparado no segundo trimestre de gravidez e apenas funcionaria depois de ter parido. E o problema do leite parecia não ter solução. O cão propôs ingenuamente que a gata fizesse parte da solução o que complicou ainda mais as coisas porque a gata assanhou-se, sem uma explicação aparente, e quem pagou as favas foi o gato das botas que ficou com um pelada no quadril.

No resto do acampamento faziam-se outros preparativos: o casal de pica-paus derrubava árvores para a preparação de madeiras; o coelho utilizava o ouriço cacheiro para aplainar as tábuas; o cão e a lebre improvisavam o berço à medida em que os materiais vinham chegando; as cabritas andavam pelo vale a apanhar e a acartar ervas e palha, e o caracol andava de skate de um lado para o outro a coordenar os trabalhos. Só o gato se punha de lado a bater com o pingalim nas calças de montar e a rever-se no espelho imaculado das suas botas engraxadas.

Para ler a parte já publicada e em revisão visitar o site aqui.


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5 de janeiro de 2011

Quadros (9)

A uns quilómetros dali, na outra margem da estrada, o mocho encontrou a criança.
- Olá, criança, o que andas aqui a fazer sozinha? - Perguntou o mocho movido por uma mistura de curiosidade e de ternura.
- Apanho florinhas, senhor mocho. É para dar à minha mãezinha...
- E onde está a tua mãe, criança?
- Está naquele monte - apontou - onde as pessoas ficaram todas a fazer ó-ó no chão quando o tempo se rachou ao meio e apareceu tanta luz.

O mocho, que até aí só coçara a cabeça, ficou petrificado e sentiu gelo dentro de si.
- E que vais fazer a seguir?
- Vou procurar a minha mãe, vou-me sentar ao lado dela à espera que acorde e vou-lhe dar estas lindas flores - e apontou para as flores que tinha na mão. - E ela vai ficar contente, e vai dar-me muitos beijinhos, vai puxar a minha cabeça para o colo dela e vai fazer-me muitas festinhas.

O mocho ficou sem saber o que fazer. Ainda pensou em dar o alerta à águia e pedir-lhe que lhe fizesse um ponto da situação de como corriam as coisas lá para Leste. Mas como contactá-la agora que ela andava sempre em missões complicadas e prioritárias? Como não podia deixar a criança ali, entregue aos seus próprios cuidados, assobiou no sentido contrário ao do vento e, passados curtos instantes, ouviu o restolhar no chão: era a cobra que respondia ao seu apelo.

Depois de um relato breve, pediu à cobra:
- Tens que tomar conta da criança e levá-la para o acampamento. Entrega-a aos cuidados da gata.

Dito isto, lançou-se em voo ascendente e perdeu-se no horizonte, por cima da rama das árvores.

A cobra fitou a criança nos olhos e disse-lhe em tom firme, mas carinhoso:
- Vem comigo ao nosso acampamento para conheceres amigos. E vais comer alguma coisa, senão a barriga cola-se-te ao peito. Depois, trataremos de encontrar a tua mãe.
- O que são amigos? - Perguntou a criança à serpente.
- Amigos... ? - A pergunta era tão embaraçante que até doía. De pouco serviria dar uma definição por condição necessária e suficiente, ou mesmo por género e diferença específica. Mesmo que tivesse o talento para conseguir tais definições... Por ironia, a cobra achava-se muito terra a terra. Podia tentar dizer-lhe que era parecido com, mas não se lembrava de nada que se parecesse com a amizade. Podia dar-lhe alguns exemplos, mas os que lhe passavam pela cabeça não estavam ao alcance dos conhecimentos de uma criança. Há coisas que toda a gente sabe o que são e que não se explicam. Mas as crianças são assim mesmo: não sabem, mas querem saber. E não se demovem até saber o que querem. E quando ficam a saber, nunca mais querem saber disso. Quer dizer que cresceram, que perderam a frescura matinal. Só muitos anos mais tarde, quando estiverem novamente ao cuidado dos outros, é que vão parar outra vez para indagar de novo. Tudo. Radicalmente.


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2 de janeiro de 2011

Quadros (8)

A boneca sentia-se enjoada, fenómeno que já se repetia há uns dias e que as pessoas começavam a comentar. A gata, mais sabida, e que não dava ouvidos à voz do povo, preparava-lhe umas tizanas de hortelã do rio para atenuar os enjoos, que a boneca bebia sofregamente, mas que lhe provocava uma vontade constante de urinar. Quando lia as revistas, sentada debaixo do carvalho gigante, as letras e as gravuras bailavam à frente dos olhos, pesava-lhe a cabeça e acabava por ceder ao torpor da sonolência, a revista escorrendo-lhe pelo regaço para o chão, com os dardozinhos de sol que se escavam por entre as frestas da copa do carvalho a amolecerem o seu corpo de trapos.

[Um dos velhos coçava insistentemente num dos pontos da cabeça, mais ou menos na zona temporal direita, e olhava esbugalhado para as dez cartas de copas tão vermelhinhas que lhe tinham ido parar às mãos. Infelizmente, como não tinha sido ele a dar, os trunfos passeavam-se indecorosamente por outras mãos. Ainda se o parceiro tivesse um bom jogo!.... E olhava para a cara dele mas só lhe via o carão embezerrado e seco que vestia todas as manhãs e que o acompanhava até ao deitar. ]

As vozes malévolas convenceram-se de que aquilo era obra do ouriço. Nas noites de geada, o pobre enroscava-se nos trapos da boneca para evitar hibernar. Como o inocente passava a noite toda a remexer-se, a boneca costumava aparecer de manhã com os trapos todos esgaçados pelos espinhos do ouriço, que a gata se prestava de imediato a cerzir. O que eles não sabiam, o que a gata sabia de sobra, era das plumas da pomba que se amontoavam no interior dos trapos formando uma espécie de ninho que o ouriço aproveitava para se manter quentinho.


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