Veio o tempo seco e com ele o apetite para amanhar a terra. O problema tem sido as temperaturas negativas durante a noite (cheguei a acordar por volta das sete com a temperatura no exterior a -5ºC e a paisagem coberta de geada).
Não que me arrefeçam, que, para remédio, há os edredãos e as mantas, mas porque me obrigam a madraçar durante a manhã, em diversas e aprofundadas leituras. Nestas alturas, o meio dia não é o fim da manhã mas o seu prolongar na rua. O almoço só pode vir muito depois, se o pequeno foi tardio e reforçado, e há que aproveitar o calor abrasador do sol enquanto não esmorece. Após o almoço, quase por volta do pôr do sol, fechar as janelas exteriores para não deixar escapar as ondas eletromagnéticas para as estradas alcatroadas da noite, e preparar a salamandra. O dia lá fora acabou e agora vai recomeçar cá dentro, com trabalhos domésticos, pequenas reparações e muita leitura.
Dou-me conta que, os livros que adquiri nestes últimos anos, não vou ter tempo para ler deles senão uma pequena parte. Tive quinze anos para os adquirir e não vou ter quinze anos para os ler. Agora, estou muito seletivo. Na literatura, para os autores que, em diferentes fluxos e refluxos de consciência, diferentes temperos de sentimentos e emoções, diferentes simbolizações arrancadas das memórias autobiográficas e da história coletiva, abordam a identidade e a alteridade do eu e as projetam na sua cidade: Pessoa (e as suas pessoas), Joyce, Kafka, Pamuk, Proust. Nos domínios da história, da espiritualidade, da filosofia, da física, da biologia evolutiva e da ciência cognitiva, os meus interesses centram-se em várias infeções virais da consciência: a Pessoa, o Mundo, Deus, a Sociedade, a Cidade, a Economia, o Ambiente, a Crise, a Decadência. A lista não é exaustiva e vai-se recompondo há medida em que revejo e retoco as notas para o meu livro sobre a consciência e a emergência dos valores de ordem superior, o livre arbítrio e o suicídio. Novas conclusões absolutamente espantosas das releituras de Damásio, Chalmers e Metzinger, de Espinosa, Nietzsche, Heiddeger, Arendt e Onfray, de Darwin e Dawkins, e de muitos outros. A leitura simultânea permite alinhar ideias que antes desfilavam em fileiras separadas. Surgem ideias, novas não, mas recentes, como as antigas galáxias que só agora se dão a ver porque a luz que irradiaram passou ziliões de anos a atravessar o universo para vir até nós. A minha pesquisa prossegue com a leitura dos textos sagrados (se reconhecidos como tais), ou de meros documentos históricos, que evidenciam os mecanismos (neuro)cognitivos da criação de deus e o seu papel estruturante das civilizações históricas fundadas na agricultura e urbanização, e a forma como se apoderaram dos nossos cérebros e os infetaram.
A noite chega sempre sorrateira e demasiado cedo para o cérebro exaltado. Que se abandona num qualquer sofá para só acordar nas vésperas da madrugada a tiritar de frio e a pedir a cama.
Agora, a chuva regressou, uma humidade rala e ensombrada. Os ritmos são outros, mais adentrados na casa, a apetecer escrever.
2 Comentários:
sempre interessante a partilha do teu viver aí pelo Tremontelo. eu continuo a ter de roubar tempo para viver a casa, as plantas, os bichos, os livros. gostei que tivesses reaparecido lá no "pequeno jardim".
um abraço.
Geada em vez de ondas. Aqui, tempo de pensar que não há tempo, nem para rolar de novo, reler (Proust, por ex., Joyce em nova tradução). A torre de Babel que fui construindo na memória começa a ser abalada. E temos ziliões de juros a pagar, a serem roubados, durante não sei quantos anos, antes de nos juntarmos às estrelas.
Um abraço amigo, Rui para ti e família. Uma carícia na bicharada e até sempre.
da bettips
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