27 de agosto de 2015

Um momento singular retirado do contínuo da vida.

Já houve tempos em que havia Verão. Nos dias de hoje, em que os desgovernos da nossa língua o minimizaram, pouco mais tem do que o nome. E, para quem tem memórias, e vive longe dos fogos postos, um nome minguado de significado. De resto, a vida continua. E continuaria, lenta e cheia de rançosa monotonia, não fossem os mais jovens continuamente nos prodigalizarem de preocupações e percalços, os tais cadilhos que abalam o edifício das emoções, já de si tão frágil, e minimizam o cabedal, de si já tão escasso. Hoje trata-se dos seus em idade em que era suposto ser-se por eles tratado. Já não há tempo para ser velho, vive-se em trabalhos forçados de meia-idade, em que a jovialidade e a frescura de ideias se habituaram a conviver com o reumatismo e as outras dores do corpo e da alma.

Deu-me a insónia às quatro da manhã. Acho que vai tornar-se um hábito. Estão catorze graus cá fora ao fresco, onde me sentei a escrever. Felizmente não há mosquitos. A palha seca cheira a estrumaria. Os galos, tanto a norte como a sul, cantam com vozes roucas e esganiçadas, talvez para as sobrepor à barulheira que vem da auto-estrada, hoje, que não sopra vento, inabitualmente ruidosa com o trovejar dos camiões. De repente, susteve-se, por momentos, o barulho. Como que incomodados pelo silêncio, os cães desataram a ladrar. Passa uma brisa que arrefece as partes do corpo desabrigadas pelo roupão. O Pêto estirou o esqueleto em todas as direcções e encaminhou-se vagarosamente para os meus pés onde se enroscou. Agora só ouço o seu ronronar descompassado com o tique-taque exacto do relógio barato do Ikea. Experimento que a vida continua. Acho que é assim que a vida deve ser vivida: agarrados ao momento que passa mas que em si mesmo perdura. E cada momento que passa é uma experiência de eternidade. Um galo canta novamente e a brisa endurece. É momento de voltar e saborear as quenturas do quarto e dos lençóis com a consciência a ansiar por outras vivências mais desordenadas e de difícil compreensão.

1 Comentários:

At 13/09/15, 18:02, Blogger Justine comentou...

partilho contigo a insónia ás 4 da manhã e o ronronar do meu gato, que a essa hora achou ser o momento magnífico para me saltar para o colo...
Bons sonhos!

 

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