11 de março de 2011

Carta sem destinatário (1)


Andamos nisto...assim, os sintomas à mostra, às vezes uns lampejos de felicidade / imbecilidade, tudo indiscernível, o dia-a-dia a conta-gotas, a sabedoria das horas negras, sabor a óleo nas engrenagens da mente, a inquietante separação e o mútuo afastamento do aqui dentro e do lá fora, a saudade e o desejo do músculo dorido na contracção do trabalho da terra, o bate-bate da drogaria nas sinapses da vida ... tudo muito sem sentido, tudo não sentido.


Lá fora parou de chover, mas continua a haver noite, desfilam ricaços na passerelle do Forbes e a crise não desampara a loja. As Parcas também o são, a crise chega a todos. Nona tece o tecido e a textualidade da vida, Décima a luxúria. E a Outra espera, diz-se que tem a tesoura de Occam e que um dia há-de cortar o fio, a eito, como se tudo fosse erva daninha.


Os filhos da geração rasca são uma geração à rasca. Pudera! Pior é ser ceifado na idade das promessas, como os jovens líbios, com os olhos marejados de areia e pó do deserto. Talvez sim, ou talvez não. A indecisão é a única garantia de acertar com a verdade, o acerto involuntário.


Eram cinco como nós, os corpos alinhados guardavam as suas ausências. Afogados no Tejo, tínhamos dez anos. Ouvi falar, pela primeira vez, de eças. Para mim, Eça era o Queirós, que ainda não tinha lido mas de quem se falava muito. Li-o mais tarde, vezes repetidas, um dos poucos que me acompanharam vida fora, como o Aquilino e o Bernardo, os de cá.


Lá fora há temperatura, não sei se quente, não sei se fria. Cá dentro, só sei que há temperatura lá fora.


Naquela noite de processão de corpos, de vigília de mentes atemorizadas, despertou-me a puberdade. Descobri as borbulhas e os pelos que despontavam no espelho todas as manhas, passadas as erecções espontâneas, os lençóis amarfanhados e os sonhos desconexos em noites infindas. Andávamos à rasca e não sabíamos ainda que éramos uma geração.


Os jovens líbios lutam por ideais e morrem para nada. A morte não deixa nada. A gente morre e leva o mundo todo connosco.


Da minha janela vê-se o que há lá fora. Eu não sei se o que vejo há lá fora, mas vejo como se houvesse lá fora. Ver é como falar: a gente diz palavras e tudo começa a existir, mesmo sem a gente saber se o que diz existe. Aliás, ser, estar, haver, existir, permanecer são palavras que dizem o que é, o que está, o que há, o que existe e o que permanece. Mas sem sabermos se o que é, o que está, o que há, o que existe e o que permanece, é, está, há, existe ou permanece.


Andemos nisto, pois ...

3 Comentários:

At 11/03/11, 12:05, Blogger Rosa dos Ventos comentou...

A Vida é um enorme Absurdo!
Lá fora e cá dentro! :-((

 
At 11/03/11, 18:23, Blogger Justine comentou...

Grande texto, Rui! Como se estivesses a falar por mim. Por mim e por tantos outros que, minimamente lúcidos,tentam perceber...

 
At 05/04/11, 01:54, Blogger augusto, um entre mil comentou...

pois. está tudo dito. pois, sem sabermos se o que dizemos se ouve.

ou se carteiro entrgará as cartas que escrevemos e enviamos sem pôr selo.

 

Enviar um comentário

<< Página inicial