15 de setembro de 2015

No pequeno rectângulo de luz

Eu sei que hoje foi um dia cansativo de não fazer nada. Dizendo melhor: que ontem foi um dia cansativo de fazer nada. 

"Melhor" não quer dizer "mais bom", quer antes dizer mais acertado com os relógios e os calendários. Caso contrário, não estaria hoje a ser hoje ainda em continuidade com o longo e cansativo dia em que não fiz nada. Não fazer nada é uma maneira utilitarista de dizer, fiz mesmo muitas coisas que não serviram para nada. Lá servir, serviram, mas foi apenas para miúdos fins, coisas de pouca monta que, somadas, deram uma grande canseira. Que, se não tivessem acontecido, não se daria por falta delas. Em vez de fazer o almoço e o jantar, e de ter lavado a loiça, poderia ter ido ao restaurante. Mas não. Teimei em ficar o dia a ver os outros a trabalhar, a assistir às conversas que se deve ter quando se está a trabalhar, a persistir em conversas de que não somos parte, apenas somos apanhados por elas como árvores arrancadas ao solo pelo vento. O dia passamo-lo a assentar o corpo, ora numa perna, ora noutra. E, quando nos deitamos, damo-nos conta de que o passámos todinho a moer os discos intervertebrais, tal é a má disposição, tais são as dores, o incómodo da falta de posição, um sei lá quê de mazelas. É aí que o dia não passa, continua pela noite adentro, uma noite cansativa de não fazer nada, com a mudança apenas de o corpo passar da vertical para a horizontal e o dia do claro para o escuro. 

Pois bem, o corpo dói na mesma antes e depois de accionar o interruptor do candeeiro. Mas as dores doem mais na consciência no escuro, que a consciência não se distrai tanto. E as dores do corpo misturam-se com as dores do eu, que é isso que torna aquelas insuportáveis. Para fugir a tanta dolência, acendo o iPad como quem abre um livro. O eu fica agarrado ao pequeno rectângulo de luz. É disso que ele gosta, de rectângulos iluminados. O corpo continua a doer, mas de uma dor que já não dói tanto, que quase não dói. A consciência, agora, ocupa-se das "dores de alma", das preocupações, que não são as ocupações de que nos prevenimos criando soluções virtuais para os problemas que temos, ou julgamos ter, ou não temos mas azinha os teremos.

É impressionante a tralha que vem à consciência no escuro da noite, tirando aquele remendo nos fundilhos da noite que é um pequeno rectângulo de luz. Vem em catadupa e é difícil de apanhar, uns rasgos aqui, outros ali. Parece o lixo que se levanta e remoinha no ar impulsionado por uma rajada de vento. Pedaços, papelinhos rasgados, fragmentos do caderno diário cheio de frases incompletas com sentido, cheio de frases completas sem sentido. A gente esbraceja a apanhar um pedaço aqui, outro ali, sabendo que não vale a pena juntá-los. Eles passam em sucessão e nós chamamos a isso o tempo. Como podíamos chamar qualquer outra coisa. Também chamamos tempo a outra coisa, que é estar chuva ou a sorrir, estar ensolarado ou húmido. 

Depois, começa tudo a baralhar-se. E quando eu for desligar o iPad e pousá-lo na mesa de cabeceira

2 Comentários:

At 29/09/15, 17:32, Blogger Justine comentou...

Ah como nós precisamos de rectângulos (ou triângulos, ou losangos, ou...) iluminados!
Um abraço daqui deste sopé da serra

 
At 24/12/15, 16:45, Blogger bettips comentou...

Tanto recuei no tempo que quase tropeçava numa árvore! Mas "este lugar" feito aos poucos, cheio de histórias, é estável: vim aqui para te desejar muitas luzes, família amável, gatos e horizontes verdes.
Abraços e até sempre!

 

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