20 de agosto de 2015

O organismo, o corpo, o cérebro e o eu.

Nos postais anteriores tornei patentes e manifestas duas das minhas mais preciosas convicções: 1) que o eu é, não só uma ilusão, como é também um ilusionista; 2) que o cérebro constrói máquinas virtuais. Neste postal vou introduzir a ideia de que o eu é a maior e a mais completa das hipermáquinas virtuais criadas pelo cérebro.

Antes disso, à boa maneira da escolástica, quer da medieval, quer da moderna anglo-saxónica, convém clarificar os termos com um rotundo distinguo. A linguagem humana comporta sistemas lexicais complexos em que cada vocábulo lexical (deixemos, por ora, os vocábulos gramaticais) se associa a outros vocábulos lexicais por afinidades de significação. Por exemplo, "belo" está na proximidade de "bonito", de "esbelto" e de "formoso". Engana-se quem pensar que estas palavras são estritamente sinónimas. O seu significado varia de palavra para palavra segundo diversos prismas (punhamos de lado as subtilezas dos termos técnicos, mas pouco interessantes, como denotação e conotação).

  • Em primeiro lugar, cada palavra convém a um contexto específico: dizemos que um quadro é belo e que certo homem é formoso e dificilmente invertemos esse uso. 
  • Em segundo lugar, cada pessoa associa uma significação específica a cada termo de uma forma idiossincrática, de acordo com a sua construção particular de significados. Eu associo "belo" a "sublime" e "bonito" a "piroso". Mesmo que outra pessoa faça o mesmo, nada garante que, para ela, "sublime" e "piroso" tenha o mesmo significado que esses termos têm para mim. 
  • Finalmente, o significado das palavras varia com o tempo. "Traficante", "bodega" e "hospital" tiveram na sua origem significados nada coincidentes com os actuais. 
Para resumir, cada palavra parece-se com outra, esta com outra ainda, numa cadeia de remissões sem fim. O sistema lexical é um novelo em que, algures, cada palavra se aparenta com outra de significação oposta. Quem pensar que pode associar o significado de uma palavra a algo de real, de exterior ao sistema linguístico, engana-se. O significado é construído no interior do discurso pelo discurso e para fazer compreender outrem o que temos na mente é preciso continuar a discorrer e a dialogar num processo que só é interrompido pelo cansaço ou pelas imposições práticas da vida social. Na melhor das hipóteses, o outro alcançará uma compreensão aproximada do nosso pensamento, o que é sempre melhor do que não haver entendimento e consenso. Mas, certamente, o exercício acumulará nos interlocutores elevados níveis de oxitocina e funcionará como a melhor das drogas da felicidade. É o prazer de falar, de escrever e de ler.

Vamos lá então clarificar os termos que eu vou utilizar na minha conversa.

Uma couve galega, uma margarida, um insecto, um gato e um humano são organismos biológicos, sendo cada um representante de uma espécie biológica distinta. As espécies (ou os géneros, as famílias, os taxa em geral) são abstracções criadas pela ciência para relacionar os indivíduos entre si do ponto de vista dos aspectos morfológico e funcional, genético e evolucionário. O que na realidade existe são os organismos, cada um por si e para si, indivisíveis e finitos no espaço e no tempo cósmico. A indivisibilidade é talvez a sua característica mais importante dos animais superiores, fonte da sua individualidade e identidade. Se racharmos uma pedra ou um pedaço de madeira ao meio, aparecem em seu lugar duas pedras ou dois pedaços de madeira. Se cortarmos um ramo de um arbusto e enterrarmos um pedaço no solo, havendo as condições adequadas conseguiremos clonar um novo arbusto. Se cortarmos ao meio um organismo animal, o todo morre ou morre uma das partes continuando a outra viva. O organismo animal é uno e idêntico a si mesmo, porque é indivisível. Podemos, então, à vontade tratá-lo por indivíduo.



Os organismos ou indivíduos existem, são fisicamente reais, constituídos por moléculas de matéria organizadas de acordo com um determinado estado do mundo. O corpo (termo geralmente reservado para utilizar com animais) reflecte essa constituição e organização. Todavia, não irei utilizar o corpo como sinónimo de organismo ou indivíduo. O corpo é a parte do organismo que se distingue da cabeça, como na expressão "quando o corpo não tem juízo, a cabeça é que as paga". Mas não gosto do termo cabeça pois não exprime bem a oposição que se pretende. O importante é o órgão que está no interior da caixa craniana, o cérebro. O cérebro é uma parte especializada de um sistema, o sistema nervoso, que assegura o controlo do todo. Há outros sistemas com essa função como o sistema endócrino e o sistema imunitário. No futuro, a ciência irá englobar estes três sistemas num único. Mas, para já, fiquemo-nos pelas convenções actuais e evitemos a ficção especulativa.

O cérebro tem uma organização complexa. Cada parte exerce uma função específica no tratamento da informação que permanentemente flui no interior do organismo e de e para o meio exterior. Por exemplo, certas partes do córtex visual tratam da topografia e da geometria da visão, outras do movimento das cenas visionadas, outras da identificação dos objectos visionados. Há circuitos onde passa informação visual de uma forma consciente e outros onde passa não conscientemente (a tal percepção subliminar de que tanto se fala com tão escasso conhecimento e a que estão associados tantos mitos).

Uma particularidade importante do cérebro é a geração de memórias explícitas e implícitas de longo prazo. Ao contrário do que anda para aí espalhado, estas memórias não são como os discos rígidos dos computadores, onde se escreve e de onde se recupera informação. As memórias não são lugares que contenham informação. São mais como receitas de culinária que explicam que ingredientes são necessários para reproduzir uma cena e quais os procedimentos que se deve seguir para obter essa cena reproduzida. E os ingredientes são sempre relacionados com a realidade actual e o contexto presente, nada que tenha sido "gravado" no cérebro ou noutro sítio qualquer. O que vai sendo gravado e regravado (sem controlo de versões) é um conjunto de disposições, de regras, de algoritmos para obter um resultado. Por outras palavras, máquinas virtuais. O cérebro é um engenheiro e um operário especializado, um produtor e um condutor de máquinas virtuais. 

No seu importante papel de vigilante, controlador, guarda, provedor e cuidador do organismo (e não só do corpo porque o cérebro também tem que cuidar de si próprio), o cérebro está continuamente a produzir representações mapeadas de todo o organismo e de cada uma das partes (sensações, movimentos, humores, emoções), aquilo a que nos referimos quando falamos de imagem corporal, auto-imagem, auto-estima, etc. Sentir uma dor nas articulações ou um formigueiro num braço que já não existe (membro fantasma), sofrer uma paixão violenta ou estar triste, ter fome, ver lagos com baleias no deserto são representações criadas pela maquinaria cerebral.

A partir de certa idade na infância, sob o impulso do grupo social que alimenta e protege a criança, esse conjunto de representações autonomiza-se na forma de uma máquina virtual hipercomplexa e constitui-se em entidade à parte: organiza-se um "eu", um sistema que vai ter uma evolução peculiar. O que inicialmente era um duplo, um backup das experiências do organismo, autonomiza-se, torna-se consciente de si e da sua existência (cogito, ergo sum) e passa a dono do organismo. Com a velhice ou o eventual aparecimento de doenças neurológicas (Alzheimer, demência semântica) começa a esfumar-se até desaparecer, como o gradual desaparecimento das cores numa fotografia analógica impressa há muito tempo.

Como tem muito que se lhe diga, e como ainda estamos muito longe de conseguir ver o que é que tudo isto (inclusivamente a intromissão cartesiana) tem a ver com o Tremontelo, fiquemos hoje por aqui. 

Só para relembrar e sumarizar:

  • O organismo, composto de corpo e cérebro, é um indivíduo real que existe materialmente. 
  • O eu é uma máquina virtual do organismo que tem a ilusão de o controlar e age como ilusionista (veremos como em próximos postais). 
  • O organismo tem um vida efémera. 
  • O eu ainda mais: nasce mais tarde que o organismo e morre mais cedo do que este dependendo da condição neurológica do cérebro. 
O eu humano é mais complexo do que o eu do gato, e este mais complexo do que o eu do insecto. É difícil pensar que a couve ou a margarida tenham eus. Na impossibilidade de o saber, o melhor é calarmo-nos.