26 de maio de 2008

Porque não sou ateu?

Quando se pergunta a razão por que não se é alguma coisa parece estar implícito que há algo que indiciaria objectivamente, ou que alguém poderia ter sérias razões para pensar, que se pode ou se deve ser o que se diz não ser.

Bertrand Russell ao interrogar-se porque não é cristão analisa sistemática e minuciosamente vários aspectos que considera relevantes do que é ser cristão. Nunca afirma explicitamente que há razões pelas quais vale a pena não ser cristão, que apenas fica implícito na desvalorização racional e ética do cristianismo que sustenta em cada tópico da sua dissertação. A sua proposta final é, de certo modo, comum a todos os ateus contemporâneos: cortar com os grilhões do passado, manter a lucidez e olhar o presente e o futuro da humanidade com mais inteligência.

O tipo e a estrutura da abordagem parecem-me bons pelo que irei segui-los na defesa do problema que se albergou na minha interrogação inicial.

Assim, deverei começar por esclarecer o que entendo ser “ateu”, estabelecer o âmbito das propriedades que limitam o conceito, analisar e avaliar a bondade de cada uma das propriedades e, finalmente, apresentar uma proposta decorrente das conclusões obtidas.

O ateísmo caracteriza-se pela oposição racional ao teísmo através da postulação de argumentos que negam a existência de deus, rejeitam a a superioridade ética da vida religiosa e mostram alguns efeitos perniciosos para o bem estar da humanidade de comportamentos e atitudes assumidas ao longo da História pelas comunidades confessionais e suas hierarquias. Estou a assumir o termo “teísmo” em termos muitos gerais que vão desde o panteísmo aos monoteísmos: quer se trate de acreditar num deus único, no carácter divino do universo ou na divinização de múltiplas forças naturais ou sociais, é a natureza do divino, e não as suas figurações, que importa analisar. Por outro lado, também, não farei distinções entre o teísmo e o deísmo, pelas mesmas razões. Aceitar a existência de deus tem para o ateu um significado que é independente dos seus atributos. O ateu acha que deus não existe sob qualquer forma.

E o agnosticismo? Não será o agnosticismo uma forma mestiça, híbrida de ateísmo e teísmo? Uma pessoa que se diz agnóstica confessa, em termos práticos, a sua incapacidade para tomar parte da questão. Se calhar, deus não existe; se calhar, deus existe. Para o agnóstico, não é possível tomar uma decisão face a um problema dessa magnitude; a questão está fora do alcance da capacidade de conhecimento (gnose) humano; por conseguinte, cada um é livre de assumir as atitudes e professar as crenças que bem entender.

Face a uma tal posição, compreende-se que o agnóstico seja arrumado pelos teístas na prateleira em que estes colocam os ateus; inversamente, um ateu tenderá a ver no agnóstico um teísta indeciso.

Resumindo, o ateísmo é uma posição que se autopercepciona como distinta e contrária ao teísmo, ao deísmo e agnosticismo.

Em termos positivos, o que é que caracteriza o ateísmo?

O aspecto decisivo, que estabelece o corte com as restantes posições deste universo, é a crença na não existência de deus fundamentada racionalmente. Não abordarei os argumentos clássicos desta posição que estão solidamente estabelecidos e bem apresentados e difundidos. A exposição de Russell na dissertação referida mantém nos dias de hoje plena actualidade. Mas os mesmos argumentos têm sido reformulados de uma forma mais consistente e melhor apoiados no conhecimento científico actual o qual não cessa de dar contributos para reforçar a posição ateísta. A propósito recomendo a leitura das obras do sociobiólogo Richard Dawkins ou do filósofo Daniel Dennett.

O segundo aspecto do ateísmo é identificar as motivações e os processos biológicos e culturais que ao longo da evolução da espécie conduziram à consolidação das ideias de deus e da religião e analisar de que maneira e em que grau as religiões positivas contribuíram para confortar ou aviltar o ser humano. O pendor constante na história para este último efeito constitui um novo tipo de argumentos a favor do abandono da ideia de deus.

O terceiro aspecto é de que nada serve negar a existência de deus e a ineficácia das religiões para a resolução dos problemas humanos se isso não conduzir à procura de uma explicação racional e coerente sobre o homem e o universo. O ateísmo introduz aqui uma visão libertadora sobre o medo e sobre todas as forças exploradoras do homem, assume uma crença positiva a respeito da capacidade da inteligência para resolver ou minorar os problemas humanos e defende a visão naturalista do mundo baseada no conhecimento científico.

Porque não sou ateu? Porque não sou ateu se nego a existência de deus, se considero as religiões uma das principais causas ou desculpas do obscurantismo e das misérias humanas, se tenho uma orientação positiva para a humanidade e a natureza?

Considero o pensamento humano - em que incluo a consciência, os processos cognitivos, o mundo simbólico das linguagens, das ideias e dos discursos, os sentimentos, as memórias internas e as externalizadas em artefactos, et cetera – como um conjunto de objectos biológicos com vida própria e constituído em sistema. Como sistema vivo é um sistema evolutivo no sentido em que é suficientemente diferenciado para prover adaptações às mudanças ambientais que põem em risco a sua sobrevivência.

O pensamento humano é um sistema complexo evolutivo paralelo e autónomo face ao sistema vivo natural.

Embora tenha sido inicialmente criado pelas faculdades biológicas da espécie (ou co-desenvolvido com estas) para proteger e ampliar a sua capacidade de sobrevivência, ao adquirir autonomia e ao expandir-se, passou a ter por lógica interna a auto sobrevivência a todo o custo mesmo que esta represente a liquidação da espécie humana ou do planeta.

Símbolos como deus, o estatuto ou o dinheiro, ou ideocomplexos, como a religião, a raça ou o mercado, são tão arcaicos e tão infra-estruturantes de todo o sistema simbólico que este arrisca-se a ruir se algum deles for mexido. É nessa lógica guerreira que assenta o fanatismo, o proselitismo e o espírito evangélico de todas as confissões, ideologias, seitas, clubes. E também a sua magia e o seu maravilhoso.

Contudo, o homem está ameaçado como está o planeta pelas mesmas razões. Aquilo a que atribuímos a criação do mundo e da espécie está a contribuir de uma forma acelerada para a destruição da Terra e do Homem. Neste caso, torna-se vital combater deus activamente, não chega negar a sua existência. A constatação do facto de deus não existir em nada altera a condição humana. Mas a sobrevivência da sua ideia é nefasta pelo que tem que ser combatida.

Mas, dir-me-ão: esta não será uma posição intolerante, anti-democrática? Verificando-se que há uma esmagadora maioria de pessoas crentes, tomar uma atitude francamente hostil para com a religião não será desrespeitar os sentimentos das pessoas, atentar contra a liberdade de pensamento e de culto, rejeitar a um ror de gente um bálsamo e um lenitivo para as suas grandes dores e tristezas?

Contra isso não posso argumentar que foi isso mesmo que os cristãos de todas as versões fizeram a maior parte do tempo ao longo de dois milénios, que é isso que o terrorismo islâmico faz, que todas as religiões fazem. Não se trata de fazer pagar, de forma jacobina, com igual moeda.

O ideário nazi foi partilhado por uma maioria de alemães e teve apoiantes em todo o chamado mundo livre. Que apoiaram os esforço de guerra, propagandearam ideias racistas e xenófobas, que fecharam os olhos aos campos de extermínio. Os alemães que se opuseram não se sentiram eticamente culpados por “ferir os sentimentos da maioria”, lutaram para exterminar o nazismo e não se sentiram “antidemocráticos”. A atitude que devemos ter perante o fascismo, a xenofobia, o racismo, o latrocínio, o genocídio e o geocídio é de combate.

Ser afascista, isto é negar as proposições do fascismo, e não o combater não é nada. Do mesmo modo não é nada ser ateu

Se ser antifascista é combater a loucura do fascismo e educar o cidadão para a vida democrática, ser antiteísta é combater a loucura mística e preparar a humanidade para o luto de deus.

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7 Comentários:

At 26/05/08, 18:33, Blogger dona tela comentou...

Será que um dia eu consigo falar sobre estas coisas de religiões no meu blog? Não acredito. Dá gosto conhecer pessoas que sabem tanto.
Lá no meu blog é o que se vê...

Uma boa tarde para si.

 
At 26/05/08, 21:46, Blogger poetaeusou . . . comentou...

*
ser ateu . . . é ser !
agnóstico,
no minimo,
e
Céptico
Herege
Ímpio
Descrente
Incrédulo
,
o não ser é ser, simplesmente,
,
saudações,
,
*

 
At 27/05/08, 10:08, Blogger Teresa Durães comentou...

Dizem que há 98% de crentes no mundo inteiro. estarão todos enganados?

 
At 27/05/08, 17:51, Blogger Rodrigo Fernandes (ex Rodrigo Rodrigues) comentou...

Teresa Durães

Só 98%, Teresa? Não estarás enganada? Vai lá contá-los outra vez, sff.

E já agora reparte-os pelos respectivos clubes para marcarmos os torneios. Dou-te um exemplo.

Ulster: Protestantes-Católicos
Palestina: Judeus-Muçulmanos
Muçulmanos do Iraque: Xiitas-Sunitas
Ex-Jugoslávia: Cristãos-Ortodoxos
Cristão-Muçulmanos
Ortodoxos-Muçulmanos

 
At 27/05/08, 18:02, Blogger Rodrigo Fernandes (ex Rodrigo Rodrigues) comentou...

No comentário atrás cometi uma gafe imperdoável que foi confundir cristãos com católicos. É a tirania e a prepotência do hábito.

Portanto, onde diz "cristãos" deve ler-se "católicos", os croatas, obviamente. Os "ortodoxos" sérvios também são cristãos.

Já agora lista apenas as religiões maiores porque ao todo são milhares.

 
At 29/05/08, 10:03, Blogger musqueteira comentou...

...perante as "coisas" de Deus, as palavras são insuficientes: é escusado. a Fé é inquestionável. é esse o mistério dos Crentes.

 
At 29/05/08, 16:10, Blogger Teresa Durães comentou...

fui contá-los e deu afinal 98,1% ;)

 

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