20 de abril de 2008

Perdido no deserto

Sobrevoámos as dunas de Ubari em direcção a Sebha. O grande mar de Areia banhado ainda pelo Sol, que se refugiava para além da fronteira imaginária da Argélia, refulgia numa cor acobreada, variando tonalidades de fogo vivo, passando pelo âmbar e açafrão, ao vermelho laranja, a contrastarem com o negro absoluta das sombras projectadas a leste pela enormes dunas e elevações graníticas. Lá em cima avistávamos durante tempos os lagos na região deserta de Fezzan e Jebel Akakus recortados pela densa vegetação das palmeiras e do capim seco e os megalíticos qarsr em adobe. Pernoitámos num hotel em Sebha com vista para um jardim circular desenhado em torno de um belo lago.

Estivémos sempre acompanhados pela enfermeira, uma mulher na idade indefinida da juventude, de tez escura e olhos profundos como o mar que destilavam um azul indigo da cor do vestuário por que são conhecidos os tuaregues. Usava a cara nua, como é costume nas mulheres do seu povo, um rosto oval, finamente desenhado. Não só pelo aspecto visual, pela graça no andar, pelas maos finas e oblongas, que parecia estarem sempre a evoluir em dança oriental, não só por isso o olhar irresistia. A pele exalava o perfume do pó do sândalo branco que se impunha como uma presença pregnante e avassaladora. Perdido quis jantar na esplanada. Pouco comeu, a olhar sempre com o olhar parado e fixado no pequeno lago artificial.

A viagem de Sebha para Tripoli, e o regresso a Lisboa foram calmos, com Perdido sempre a dormir, o que me deu a oportunidade de reler e treler os seus escritos do deserto. Em Lisboa, internámos Perdido no Hospital de Santa Maria onde esteve cerca de mês e meio internado. O seu estado de saúde, a princípio, inspirou cuidados, mas passados cerca de 30 dias o seu estado de humor melhorou bastante. Dava gosto vê-lo de novo no seu gozo cerrado de sarcasmo inteligente, ou o corte diamantino da sua ironia, ouvir as suas gargalhadas estrídulas ou deixarmo-nos levar pelo seu largo sorriso em que mostrava o esmalte lustroso dos dentes que lhe restavam.

No meio do discurso ininterrupto e encavalitado largava, de vez em quando, uma ou outr palavra em tamasheq.

Ver outro post relacionado (o regresso de Perdido).

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