20 de julho de 2006

Demónios e diabos

Demónios e diabos andam juntos, normalmente, na conversa do povo e nos tratados eruditos. Mas, tratar-se-ão das mesmas pessoas, será gente afim, serão os termos permutáveis?

Na minha opinião, discordo absolutamente da identidade das criaturas. Pertencem a contextos diferentes e a eras da humanidade muito afastadas.

Ambos os termos têm origem no grego. "Daimon" era um termo corrente para designar uma entidade divina, deus ou deusa. "Diabolos" (diabo) representa o conceito de qualquer força separadora ou processo que conduz à separação e dispersão; opõe-se a "sünbolon" (símbolo) que representa o reconhecimento na unidade de duas partes distintas.

No monoteísmo na fase primitiva, os demónios são todos os deuses que, assintindo às ascenção vitoriosa do deus único, exclusivista e ciumento, não se conformam e vão à luta travando um combate desesperado para recuperar o poder sobre o Mundo ("mundus", em latim, significa "o limpo", o ordenado" como oposto a "immundus", aquele que é "impuro"; vide no grego a mesma oposição entre o "kosmos" e o "kaos"). À medida em que o resultado da luta pende para o lado do deus único, Iavé, os demónios governam cada vez mais o reino das trevas, os lugares inferiores do universo. O seu destino é a ostracização e a condenação ao esquecimento.

O cenário é de mudança e de combate. Cada parte da contenda luta pelo que julga ser seu de direito: de um lado, conservar o equilíbrio tradicional do panteão; do outro, instaurar uma ordem nova fundamentada no despotismo monista. Mas a atração do monismo é mais poderosa do que as forças em conflito: progressivamente, a legião de demónios vai-se plasmando na figura única do demónio, Satã (o "adversário", o "desafiador"), transformando uma luta entre exércitos numa contenda entre os senhores da guerra.

No monoteísmo judeu, Iavé é um deus ciumento e birrento que estabelece uma aliança "monogâmica" com o povo eleito; no monoteísmo cristão, Iavé é um deus vingativo, o estratega que prepara a derradeira e decisiva batalha, o Armageddon.

Voltaremos a este tema para esclarecer a relação entre Lúcifer (o "portador da luz") e o deus único: aquele, o ordenador e o senhor deste mundo; o outro, aquele que é, Rei dos Reis e Senhor dos Senhores.

Voltemos à questão: e o diabo?

Em termos históricos, o diabo é uma figura recente aparecida nos finais da Idade Média europeia. Sobre esta questão, remeto o leitor para "Uma história do Diabo. Séculos XII a XX", de Robert Muchembled (2003, Terramar). A demonologia moderna assenta na identificação do diabo com a figura grotesca, animal e mal-cheirosa, na liturgia dos sabbats, na tópica sulfurenta do inferno e nos processos da bruxaria. É acidental e espúria a parecença desta triste figura, peluda e cornuda, com Cernunos, o deus celta da fertilidade e da caça. O facto mais insólito destes tristes séculos em que o poder imperial e monolítico dos príncipes europeus se opôs ao sentimento de liberdade dos povos e das gentes traduziu-se na impiedosa caça e extermínio das bruxas. O fervor exterminador foi particularmente sangrento no norte protestante para calar toda e qualquer heresia que atentasse contra a ortodoxia ideológica do capitalismo em ascenção.

O Dia-bolo versus o Sím-bolo: crença na multiplicidade ou crença na unicidade. O Símbolo de Niceia é "credo in unum deum, patrem omnipotentem, factorem coeli et terrae, visibilium omnium, et invisibilium."

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2 Comentários:

At 02/08/06, 09:41, Blogger Unknown comentou...

O CONXURO DA QUEIMADA
(sin autor)
Mouchos, coruxas, sapos e bruxas.

Demos, trasgos e diaños,

espritos das nevoadas veigas.

Corvos, pintigas e meigas:

feitizos das manciñeiras.

Podres cañotas furadas,

fogar dos vermes e alimañas.

Lume das Santas Compañas,

mal de ollo, negros meigallos,

cheiro dos mortos, tronos e raios.

Oubneo do can, pregon da morte;

fuciño do sátiro e pe do coello.

Pecadora lingua da mala muller

casad cum home vello.



Averno de Satán e Belcebú,

lume dos cadavres ardentes,

corpos mutilados dos indecentes,

peidos dos infernales cús,

muxido da mar embravecida.

Barriga inutil da muller solteira,

falar dos gatos que andan a xaneira,

guedella porca da cabra mal parida.



Con este fol levantarei

as chamas deste lume

que asemella ao do Inferno,

e fuxirán as bruxas

acabalo das suas escobas,

indose bañar na praia

das areas gordas.

¡oide, oide! os ruxidos

que dan as que non poden

deixar de queimarse no agoardente

quedando así purificadas.

E cando este brebaxe

bailxe po las nosas gorxas,

quedaremos libres dos males

da nosa alma e de todo embruxamento.



Forzas do ar, terra, mar e lume,

a vos fago esta chamada:

si é verdade que tendes mais poder

que a humana xente,

eigui e agora, facede cos espritos

dos amigos que estan fora,

participen con nos desta Queimada.

 
At 24/08/06, 00:31, Blogger Rodrigo Fernandes (ex Rodrigo Rodrigues) comentou...

Bem bolada, caro chinook! E para que conste, para que todos os leitores deste blog se possam deliciar com o CONXURO DA QUEIMADA, este vai ficar na primeira páxina. Tal e qual!

 

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