O deserto
Para dentro e para fora do olhar, para onde quer que eu olhe, o deserto é a rarificação da vida: exiguidade de substância viva e escassez de meios de sobrevivência. Na alma também há desertos, quando os seus habitantes morrem e se instala um clima de secura.
Porquê, pois, a atracção do deserto? Porquê a necessidade desse esvaziamento, da formação desse vácuo, da irrupção desses silêncios, do afundamento dos horizontes?
A vida habitual faz-se entre objectos. Habitual, digo bem, porque o hábito faz o monge. E esse hábito de objectos (essa vestimenta tecida de objectos com que me cubro para ocultar do outro a nudez do eu) faz-me monge (“monachós”, solitário).
Mas não é o deserto o espaço monacal por excelência? Porquê trocar o hábito dos objectos pelo hábito do não objecto? Pelo hábito do não objecto, ou pelo hábito da ausência do objecto?
A natureza em geral é o espaço do não objecto. Pega-me pela mão, vem ao meu jardim, vem à minha floresta conhecer esta comunhão de inter-subjectividades: o coelho, a perdiz, os insectos, as flores, as ervas, as silvas, o arvoredo. Este é um mundo dos não objectos, por onde espreitam os silfos, as fadas e os duendes, seres de entre dois mundos, rabinos, brincalhões, travessos. É um mundo sem objectos: ou onde, porém, os objectos se sentem mal.
Na ausência do objecto sente-se o seu oco, a vacuidade deixada pelo seu retiramento. Em dias de muito trânsito e em locais de destino muito apetecido, percorremos os lugares num vai-vém desenfreado para encontrar um lugar onde estacionar. O que é um lugar para estacionar? precisamente o oco deixado pelo outro veículo. Assim é o mundo da ausência do objecto: um mundo em que o oco predomina. Desertificar significa a crescente prevalência do oco.
Esse outro mundo sem objectos, o deserto que o monje procura, é um mundo onde a vida quase se esvai e a sobrevivência não é garantida. Que procuras no deserto? No deserto sahariano, nas altas montanhas, nos lagos gelados, na beira do abismo? O esvaziamento de si?
O sol hoje beliscava-me a pele e a tua presença, o espírito. O mar ao longe era esse deserto azul de imagens perpetuamente sobrepostas. Próximo, os rochedos cobertos de líquenes atapetavam de verde a areia da praia. O serviço, e em volta os outros ocupantes da esplanada, nem se notavam. As palavras eram de férias, de lugares de que se gosta, de partidas para aventuras esboçadas a meias palavras. De pessoas amigas que iam e vinham permanentemente no espaço da memória, na travessia do Atlântico para as terras prodigiosas do Brasil.
O tempo é a matéria de todas as viagens.
Esse outro objecto, fetiche da modernidade, toma conta de si próprio e enfia-se rumo à catedral dos objectos. Tu alertas, sinalizas, e retomamos os descampados, emparedados pela sinalética: “Sassoeiros”, “Carcavelos”, “Marginal”. A viagem é um piano onde tu treinas a voz aveludada da tua sensibilidade.
O tempo é de voltar, porque depois o tempo é comprimido, empacotado nesse objecto abjecto de gerir tempo, a reunião. É o tempo do adeus, do até ver, da saudade anunciada.
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