29 de dezembro de 2010

Quadros (7)

As cabrinhas não paravam de espinotear no montículo de areia. Andavam à roda numa fona, uma atrás da outra, às marradinhas no nada.

O gato experimentou o chapéu de feltro novo que a gata tinha encontrado numa antiga lixeira, lavado e engomado com esmero. Mirou-se ao espelho, ajeitou-lhe a aba, agitou o pingalim e imaginou-se no papel de Indiana Jones. O coelho ria-se. Ria-se da vaidade do gato, e ria-se da toleima do caracol que insistia em dar a volta ao mundo na carapaça óssea da tartaruga.

É claro que o caracol fora instigado pelas ideias da boneca, mas ninguém, nem mesmo a boneca, percebia onde ele tinha ido buscar essas ideias. Sabemos que tudo o que é dito sai como um fio de voz pela boca das pessoas e fica preso como um papagaio a planar lá nos céus, cada vez mais longe, mais longe, mais longe...

Houve alturas em que se pensava que os discursos faziam parte de histórias e que cada história criava e mantinha a identidade do indivíduo. Os bebés anafados continuavam a história dos progenitores e criavam a sua história pessoal que engordava ao sabor do tempo, narrativa expressa em termos de currículo de vida, de autobiografia; ou de romance, quando escrita pelo outro. Aliás, a própria narrativa separava o próprio do outro para criar o próprio. A boneca sacudiu os farrapos da cabeça como que a afastar este curso de pensamento que levava a nada. Ela sabia que o eu era uma ilusão, que se retirasse os trapos que a envolviam, largando-os no chão, nada restaria: o eu, como a identidade da cebola, são as várias camadas de trapos que se envolvem umas às outras.

As cabrinhas não se cansavam das cabriolices com que entretinham o adolescer complicado das suas hormonas. O cão é que não gostava dos respingos de areia que lhe chicoteavam o focinho gelado e húmido, aquilo era ferramenta para manter em excelentes condições de operacionalidade! Traçou a pata peluda bem à frente dos olhos ficando a espreitar por uma nesga de horizonte e resignou-se à petulância das cachorras de cabra.

[ Os velhos há uns tempos que haviam posto os baralhos de parte e dedicavam-se a analisar, um a um, cada copo que enchiam do cangirão de barro negro e davam estalidos com a língua. Que esse, sim!, é que fora um ano bom. E torciam e retorciam o lóbulo da orelha, preso entre os dedos polegar e indicador, e piscavam o olho denunciando a aprovação partilhada ]

O coelho gostava das brincadeiras das cabritas e ainda pensou em meter-se debaixo da areia, escavar uma toca e aparecer no meio das duas, de braços abertos e a boca atolhada em sorrisos, e dizer-lhes: "cucu!". Isso era o que ele pensava. Pois, como se sabe, os coelhos são danados para as cabriolices. Mas, daí a fazer... Resfriou-se-lhe a coragem, murcharam-lhe as orelhas e foi-se acoitar ao pé da lebre que resfolegava da última incursão ao mundo da vertigem.

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1 Comentários:

At 31/12/10, 17:59, Blogger Justine comentou...

Esse quadro é um verdadeiro "Carnaval dos Animais", (com alguns humanos entre parênteses)
Que o novo ano dê para a gente se encontrar e matar saudades, então!
Beijo

 

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