7 de novembro de 2010

Quadros (2)

Está sempre a acontecer - disse a lebre - sou mais rápida que o pensamento. és, mas é, estúpida - pensou rapidamente o gato - quando corres, vejo um torvelinho atravessar-se à minha frente e dissipar-se algures no nada. depois, mas muito depois, lá vem o teu pensamento, como um velho, agarrado à sua bengala.

[O velho deu novamente as cartas, revelou o trunfo, arrebanhou a sua mão, cofiou o bigode amarelado e sorriu-se] O ouriço recolheu-se na sua catatonia armadilhando o seu derredor.

Passavam jipes vindos da frente cheios de magalas amortalhados em ligaduras ensanguentadas. ouvia-se o troar dos canhões, era uma frase de que estavam cheios os romances de novecentos. mas não se ouvia, nada se ouvia. {apenas o horizonte púrpura dos clarões dos "xasers"}. cada vez mais era assim: as coisas aconteciam. aconteciam e pronto! A gata afiava as unhas no córtice da árvore.

A boneca de trapos pegou na ardósia e escreveu uma afirmação. e depois outra. e, finalmente, a conclusão. dir-se-ia um argumento válido. fez a dedução sintáctica e concluiu tratar-se de um argumento válido. aí estava: a lógica, ora precede a vida, ora lhe sucede, alternadamente. como um pêndulo.

A lebre passou a correr em sentido contrário. ninguém a vira, claro. era tão veloz! mas sentiu-se uma ligeira brisa à sua passagem. a boneca de trapos garantiu que a invisibilidade da lebre era a prova ontológica da sua existência. e que a lentidão do pensamento mais não era que uma dúvida metódica. a boneca de trapos dizia assim coisas que ninguém entendia. o que a amargurava, por certo, chegando ao ponto de confessar que era uma língua de trapo onde não conseguia pôr tento.

Quem a entendia e estimava era o ouriço que por ela nutria secretamente uma paixão inefável porque tida por contra natura. A boneca pegava no ouriço ao colo, afagava-o, e não se queixava de que ele a picava. parecia até gostar das intempestivas e múltiplas picadas com que o ouriço a mimoseava quando se enrolava nos seus panos de trapo. [O outro velho bateu a carta com violência e ergueu a crista dando ares do macho alfa que fora]

A gata punha a casa em dia. ao pé dela o gato arrastava a cauda pelo chão e baixava o pêlo. A PM corria de um lado para o outro com o apito na boca a tentar pôr ordem no caótico trânsito.

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1 Comentários:

At 12/11/10, 16:09, Blogger Justine comentou...

Continuo a achar que é nos gatos que se encontra a sabedoria inteira! E que a lógica pode, apenas, substituir a vida...

 

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