19 de agosto de 2010

Atando os nós

Continuo a existir pensando que "existir" é apenas continuar a levar uma vida com um corpo dolente e uma pele comichosa. A complicação, agora, já não é o calor que me abrasou a semana passada, mas o frio e a humidade que, aqui em Peniche, me invadem e penetram até à medula dos ossos. Sei lá se os ossos têm medula, mas ganem que nem uns malditos cães sovados. "Cães" é uma péssima imagem para os ossos, mas estes reumatismos paralisam-me o imaginário que, assim, à rédea solta, não pára de asneirar.

O ponto de interrogação, o meu, o verdadeiro, o genuíno ponto de interrogação não se prende com os euros (que afinal não tenho, pois me contento com os últimos centos que já ninguém aceita para troco). O meu ponto de interrogação são as memórias, que afluem de todo o lado e confluem sabe-se lá para onde - o meu Letes, o meu Minium, o meu rio, que é um escorrimento para nenhures, para o oblívio total.

Sou então uma mónada sem janelas para o mundo, como pretende Leibniz, que apenas compreendo o mundo porque a sua totalidade se reflecte no meu íntimo de acordo com uma harmonia pré-estabelecida. Então o calor e o frio, as dores e as comichões, o lixo e a poluição das cidades são apenas representações, performances infinitamente repetidas de uma peça sem sentido. A mãe lá conseguiu vaga na enfermaria do hospital e deixou a S.O. Perdi o contacto com Leibniz, meu parceiro das esperas no Amadora-Sintra. Agora limito-me ao manual do Java numa espécie de revisão final da matéria em movimento perpétuo. Não essa matéria que é empregue para encher o universo, mas daquela que vai enchendo o meu tempo livre de férias.

O ponto de interrogação incide sobre as memórias...

Post Scriptum: Lembrei-me que tinha escrito isto ontem à noite lá em cima no terceiro piso na mesa alta encostada à janela à luz do candeeiro com pilha solar. Lembrei-me também - aliás estou sempre a lembrar-me - das dores com que acordei esta noite, que me dilaceravam os sentidos sempre que dava uma pequena volta na cama obrigando a coluna a uma pequena rotação. Analiso uma e outra das lembranças e verifico o que ambas têm em comum e o que ambas têm de diferente. O resultado é apenas uma lista de semelhanças e diferenças que não tem interesse para ninguém. As pessoas são todas iguais, penso. As pessoas, no fundo, são todas como eu. Fazem as perguntas sabendo que detestam as respostas. Porque, no fundo, já as conhecem. Se não, não perguntavam. É como as conversas: só fazem sentido se ambos estiverem de acordo. Só com a firme garantia de que há e se manterá o acordo, virão as divergências e a discórdia que alimenta uma conversa razoável. Sabemos, no fundo, que a opinião do outro é a opinião que poderíamos ter acarinhado se a tivéssemos apanhado primeiro. E daí vem a nossa preferência pela opinião contrária. É certo que não nos interessamos pelas opiniões dos outros mas sim pelo que os outros fazem pelas suas opiniões. É como no jogo das cartas: o importante não são as cartas que o adversário ou o parceiro têm na mão; o importante é o que eles vão fazer com elas. A não ser que nos habituemos aos nossos parceiros de cartas e os seus comportamentos, as suas atitudes e as suas decisões se tornem previsíveis. Então, o jogo devém a eterna repetição do mesmo, como o levantar-se todos os dias, o fazer aquelas coisas que nos esperam, como ontem e amanhã, e o deitar-se todas as noites. (20-08-2010; 15:31; Peniche)

3 Comentários:

At 21/08/10, 11:32, Blogger Justine comentou...

Agarrando no teu post-scriptum, os reflexos da realidade estão coincidentemente a ocupar-nos o espírito. Vamos discutir isto ou também coincidimos na opinião sobre o assunto? E fica o ponto de interrogação:))))
As melhoras dos ossos...

 
At 22/08/10, 22:24, Anonymous Anónimo comentou...

Amiga mente; não mente e é sincera. Amigavelmente poemamos entre-linhas de outrém. Amanhã é diferente, se o fizermos desejado.
Que os ossos se aguentarão, assim haja a mente - há tantos ossos aguentados por aí!
Abçs
B.

 
At 29/08/10, 20:32, Blogger Alberto Oliveira comentou...

Pena teres perdido o contacto com Leibniz. É um gajo com quem se pode contar nas horas boas, nas outras menos boas e até quando não sabemos as horas. Do Manuel Java lamentavelmente não posso afirmar o mesmo. Deve ser daqueles tipos que me passam ao lado e nem dou por eles.
Realmente pensar que existimos, nos tempos que correm (e nos outros, pois tem sido sempre assim desde que o mundo é mundo e nem os bacanais romanos, as festas anuais em Serralves, um conflitozinho bélico mundial ou localizado ou uma peste devastadora, logram quebrar a pasmaceira que é a da existência humana)não é pera doce. Na parte que me toca, bem tento remar contra a maré, mas atar (e desatar) os nós de marinheiro nunca foi o meu forte.

O post scriptum, quase tão longo como o "prato da resistência" deixei-o para o serão. Pode ser que me venham os apetites enquanto navego e, acompanhado de uma ou duas cervejolas, marcha.

Abraço existencialmente patético.

 

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