16 de abril de 2010

Transições

Sou apanhado de manhã pelo nevoeiro do Inverno. As coisas estão baças, indecisas de o serem. Para as reconhecer seria preciso chamar cada coisa, uma a uma, pelo seu nome. Dou passos, cada passo segue-se a outro. A cada passo dado certifico-me de que verei sempre o que se expõe dois passos à frente do meu olhar. Neste momento, estou no pátio do Tremontelo junto ao jardim Poente. Dei a volta ao carro e aproximo-me dos canteiros. Nesta altura, não há flores. Só aquela certeza, que vem da fé, de que há uma promessa de flores. A fé é um saber que se continua a aceitar sempre que as promessas não são traídas. Agora não vejo flores, vejo promessas de flores. Aqui, uma promessa de flores azuis; ali, uma promessa de flores amarelas. Sei que as flores azuis contrastam bem com as flores amarelas. Não é por uma sugestão subjectiva: o facto está bem documentado em todos os manuais e é isso que nos dá todas as certezas subjectivas.

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O trabalho tinha-se acumulado a um canto, no Tremontelo, silenciosamente para não perturbar as indisposições do lazer forçado, e esperou até que o bom tempo trouxe a boa nova dos humores primaveris. Felizmente, a energia para pôr mãos à obra despertou em torrente e inundou os dias soalheiros. Pouco a pouco, o corpo adaptou-se a novos ritmos - o cérebro a deixar ignizar-se pelas hormonas, os músculos a espevitar-se pelo cérebro, o esforço a opiar as hormonas - num fluxo contínuo e esbanjador de uma nora numa horta saloia.

As noites foram o tempo de fazer o balanço do corpo. Cada músculo tentava individualmente sobrepor a sua voz esganiçada à dos outros protestando pela atenção que contrariamente se queria ver concentrada noutros mundos ou refugiar-se no silêncio do esquecimento. Horas profundas, adentradas pela noite, em que as gatas se ausentavam para só aparecerem ao raiar do sol e vir adormecer à frente das portadas do meu quarto. De repente, o corpo cedia ao sono e aos sonhos, tão profundos e íntimos que se tornava imposível recordá-los.

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No dia em que a chuva voltou fiquei despreocupado com a rega. Posso descansar à vontade em Lisboa, retemperar as forças, estar com a família, ter tempo para as minhas leituras. Mas o mau tempo persistiu. E piorou, fez carranca, levantou pequenos tornados, choveu a cântaros e enegreceu.

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Está a gente no nevoeiro a olhar para as flores azuis e amarelas que ainda não pintaram de azul nem de amarelo e que de flores não passam de promessas. O vulto escuro que vejo a uns metros ao fundo é o portão de ferro da entrada no Tremontelo. Eu sei, porque vejo um vulto no local onde costuma estar o portão azul. Geralmente, passa-se tudo assim: o nosso conhecimento sobre a localização das coisas é muito orientado pelo facto de sabermos onde as coisas devem estar. Quando estou na ponte, sei que há um rio a passar lá por baixo, mesmo que o nevoeiro o encubra. E é normal haver nevoeiro no Inverno. Se fosse Verão, provavelmente o rio iria meio-seco, ou mesmo seco. Mas lá estaria o rio, que eu não veria por estar seco, mas que saberia só pelo facto de que ele deveria lá estar. Se as coisas não contituissem esses deveres, essas obrigações para connosco seria impossível sabermos delas.

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Em duas semanas de Primavera ensolarada progrediram os trabalhos nos jardins Sul e Poente, no pomar e na horta, finalmente libertos de ervas.

Houve um dia em que o jardim Poente ficou uma jóia. Levantei-me cedo e fiz as abluções prolongadas próprias dos dias de descanso. Vesti-me em modos de saída e fui directamente a Aveiras ao meu viveiro preferido onde comprei várias espécies decorativas. De volta, passei pelo Cartaxo onde almocei e me abasteci num supermercado local. Pela tardinha fora arquitectei a disposição das cores das flores e das formas dos arbustos no Verão. Acabei o trabalho com as unhas negras e todo molhado pelo esquecimento do jeito para domar a mangueira. O dia acabou em torno de uma heróica e solitária alheira confeccionada pela imaginação do artesão, em transe e inspirada pelo seu demónio interior. Havia, ainda, que reparar o sistema de rega vastamente devastado pelas geadas do Inverno e preparar a horta para o replantio.

Na semana passada ataquei o pomar a moto-enxada e as árvores devastadas pelas ventanias de Inverno a electro-serra.

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Às vezes quero escrever porque preciso desesperadamente de escrever. É a mesma coisa que andar à procura do sol, quando se tem frio, ou da sombra, quando se tem calor. Abro o caderno, limpo a caneta a uma ponta de papel. Choveu. O céu está transparente e o chão lavado. Isto é lá fora. Porque cá dentro de mim ainda estou com o obscurecimento de uma mente que tem dificuldade, não de acordar, mas de levantar-se e fazer-se ao dia. Aproximo a caneta do papel: Primeiro, para ver se ainda sai tinta; Depois, para ver se saem palavras. Tinta sai. Ficaram uns traços a separar a escrita do outro dia.

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O nevoeiro não há só no tempo, há-o também na vida das gentes. É uma neblina onde todos os contrastes se dissolvem e as palavras são as gaiolas das coisas humanas.

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4 Comentários:

At 16/04/10, 17:50, Blogger Justine comentou...

Excelente texto, Rui. As tuas palavras são gaiolas abertas para a lucidez, de onde voa, transformado em algo libertador, o quotidiano que se diz banal.
Abraço

 
At 16/04/10, 18:33, Blogger Alberto Oliveira comentou...

Se um dia publicasse um livro em papel convidar-te-ia para o prefaciares. Porque tu escreves como se estivesses a fotografar e quem te lê não confunde um prado com um relvado nem um garrafão com uma garrafa grande. Dirias, ao mais desprevenido dos meus leitores, que iriam ler um gajo com as ideias algo destrambelhadas , que acreditava que as letras têm personalidade própria (o escritor limita-se a lançá-las ao papel e elas fazem pela vida), que nas suas histórias a imoralidade era uma constante e os vicios um modo de vida. Com um prefácio desses o livro vendia-se que nem ginjas e após diversas edições eu teria dinheiro suficiente para fazer a viagem da minha vida: ao Tremontelo. E tu serias - no mínimo - convidado para gerires uma editora de livros sobre agricultura e administrador da revista Borda d´Água.

Claro que uma vez que não vou editar nenhum livro em papel, as coisas ficam como estão: muito bem.

 
At 18/04/10, 21:33, Blogger Licínia Quitério comentou...

Pois é, Rui. Ler um texto destes é um contentamento. Um texto assim repõe-nos por momentos num lugar melhor. Saber que há quem saiba dizer assim o que pensa, o que faz, o que projecta, o que prevê, o que adivinha, o que analisa, o que sente e também o que o inquieta, o que o incomoda,o que lhe dá júbilo, o que o decepciona, contando o lugar onde constrói a sua Pasárgade, saber isto, dizia eu, é um privilégio. Um abraço, Amigo.

 
At 18/04/10, 21:59, Blogger Alien8 comentou...

Um texto delicioso, é o termo que me ocorre. Como certamente a alheira.

 

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