17 de março de 2010

O segredo

Acabou-se o exílio com a ida da chuva. Assim pensava como se tudo se resumisse a pôr-se bom o tempo e a voltar ao terreno para preparar a terra para a Primavera que aí vem. Regressar não resolve os problemas. Mas que problemas, se não há problemas? Problemas é lá para a escola, para fazer em Matemática. Problemas são coisas divertidas: calcular o troco numa ida ao supermercado, resolver equações, fazer o sudoku ou as palavras cruzadas, apanhar o criminoso num romance policial, criar quintas no Facebook, arranjar explicações para os comportamentos dos políticos, deduzir um teorema ou demonstrar a existência de um deus ou do pai natal. Regressar à terra não resolve nada disto. Bem pelo contrário: regressar liberta-nos dos problemas, das alucinações culturais, dos delírios civilizacionais, das ilusões especulares, põe-nos face ao nada da natureza e da realidade material. A sós, o corpo dorido e a matéria que lhe resiste. E é nessa dor, e só nessa dor, que o corpo sabe que a realidade, essa, existe. Por essa dor se descobre como todas as outras dores são ficções: a do amor, a da traição; a da esperança, a do desespero; a da solidão, a do anonimato; a do ter tudo e não ter nada. A dor do corpo dorido é a medida da verdadeira verdade das coisas. Porque a dor grita no exílio da terra. E só se cala no derradeiro retorno, quando a verdade e a paz são o mesmo.

Os gatos foram-se todos, só ficaram as duas mais velhas, a Ratita e a Farrusca. Raras vezes, anda por aí o Tigre, uma degradação esclerosada do portentoso animal que foi. Não sei de que maneira se lembra de mim, mas ainda me vem dar umas marradinhas nas pernas. Acho que não passa de uma resposta condicional à imagem que guarda de mim, esfumada num canto do cérebro, sem significado ou adesão substancial à minha realidade. Não é aos mortos, mas aos velhos, a quem cumpre o destino de andarem por este mundo como sombras. Fantasmas vivos a ensombrarem os mais novos. Já não vem por comida ou por fêmeas, vem só por hábito. A Laranjinha, irmã escanzelada da Ratita, aparece algumas vezes à hora das refeições, para roubar a comida que lhes ponho. Se estou presente, instala-se de atalaia à distância, fixando o olhar, ora nos meus movimentos, ora nos recipientes da comida, de musculatura tensa e lambendo-se. À mínima distracção da minha parte, assalta o prato em correria desenfreada e retorna para uma posição mais alonjada com toda a comida que pode transportar na boca. A Farrusca, que empranhou outra vez, come desalmadamente e não se envergonha de repetir. Parece uma beata à volta do santo a que é devota a pedir a sua intercessão para obter uma mercê divina.

Olho as duas nos olhos à procura do segredo das suas vidas. E os seus olhos respondem-me que a vida não tem segredos. Estar aqui, neste lugar ou noutro - o que é importante é o lugar, é nisso que consiste a vida. Até que o nosso corpo e a terra sejam partes misturadas do mesmo espaço.

2 Comentários:

At 17/03/10, 18:51, Blogger Justine comentou...

Muito interessante, a tua reflexão. Raisparta a metafísica, que estraga tudo: dores, lugares, cansaços, sobrevivências...
Vai por mim: Gatos ao poder!

 
At 17/03/10, 22:10, Anonymous Anónimo comentou...

A cidade e as terras
as suas ligações à nossa realidade.
Olhar os gatos nos olhos, dar-lhes comida e di vagar, de vagar, pensar, unir.
Abçs da bettips

 

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