25 de março de 2010

A margarida.

Olho nos olhos as duas gatas indo à procura de um fundo, de um solo abismal em que se radique um saber antigo, um saber que preserve os segredos da formação do mundo, os segredos da efloração da vida e da mente. Caio nesses oleosos lagos de esmeralda e, sorvido por um vórtice que regride nas trevas até ao princípio dos tempos, mergulho na sua vazia fundura.

Na queda do corpo que se deixa embalar em movimento espiralado bailam visões multi-especulares de espelhos estilhaçados, irrompe um caleidoscópio de imagens quebradas. Já não estou sentado a olhar, agora não vejo senão em queda. Já não reflicto, não especulo e nada do que envio em forma de interrogação me é devolvido por imagem. Já não são as vidraças das portadas do meu quarto que sempre me dão um vislumbre de lá de fora; ou a janela oscilante-basculante do telhado sobre o mezaninho que lança um jorro de luz sobre a secretária onde os livros disputam entre si a minha atenção; ou o pára-brisas do carro em movimento na auto-estrada do Norte que me revela sequências de diapositivos de elementos da estrada; ou os sucessivos ecrãs do computador de secretária, do portátil, da Palm Pilot, dos telemóveis, das máquinas fotográficas. Nem é tão pouco este amontoado de imagens com que especulo na superfície luzidia e reflectora do cérebro de um irmão gémeo e que me são devolvidas com as palavras rotuladoras do conhecimento dos iniciados.

Sinto-me arrancado ao corpo e compreendo o ingresso no anti-exílio e aí cessa definitivamente o grito da dor de não ser mais que um quotidiano monótono e baço e do desgaste das articulações polidas pelo tempo.

As palavras, que eu começo a desentender, bailam independentes umas das outras. Palavras solitárias e imagens rudimentares, despidas da pompa dos magníficos cenários e da retórica dos discursos empolgantes. Palavras apenas referentes. Grunhidos que se associam a dedos apontados nesta e naquela direcção a sinalizar territórios, a pedir acções e reacções rudimentares, desinteressados dos interesses que ainda nem sonham existir.

E começo a entender sem saber dizer o que entendo. É um entender que mal se conhece a si próprio porque está colado a uma vida que ainda não sonha sequer desdobrar-se em alma e espírito.

A um dado momento vejo-me num prado em que uma onda de frio seco e brilhante me invade o peito apetente de ar em perpétua renovação. Debruço-me gentilmente sobre a margarida e sopro-a com ternura, sem a colher. As pétalas entaladas soltam-se e pairam uns tempos volteando pelo ar manso e doce e a florzinha distende-se ao sol. É a Primavera que está a chegar, decido-me a pensar com esta indecisão que consiste em pôr nome às coisas e escrevê-las com inicial maiúscula. A verdadeira primavera são todas estas manifestações que anunciam uma chegada. É como se estivesse num cais a aguardar a chegada dos navios anunciados. Ou vagueando disperso na praia, a calcar areias e seixos, à espera de pescadores que se arrojaram outrora ao mar bravo numa noite de invernia.

Sinto-me cá fora de mim e está sol.

6 Comentários:

At 25/03/10, 19:28, Blogger Licínia Quitério comentou...

Bonito texto. Perturbador, por vezes, mas a renovação é sempre perturbadora. A espera que nos abre chagas no peito. A respiração tão forte que nos embriaga e nos desarruma os mais tranquilos pensamentos. E a margarida tão frágil, tão vibrante no seu anúncio de tempo novo. E tanto que não sei dizer.

Um abraço, Rui.

 
At 27/03/10, 11:01, Blogger Justine comentou...

Tem cuidado com essas quedas pelo abismo abaixo,amigo, toma atenção a esse estilhaçar de espelhos, olha que ainda te magoas! Os olhos dos gatos são muito, muito perigosos...mas pode ser que a pequena flor sirva de antídoto!
Beijo

 
At 30/03/10, 01:27, Blogger Rosa dos Ventos comentou...

Vou passar a mergulhar nos olhos das minhas gatas e esperar...por uma inspiração destas!
Que texto interessante!

Abraço

 
At 30/03/10, 19:11, Blogger Alberto Oliveira comentou...

Texto avassalador, este. De vórtice em vórtice, o autor (ao contrário do que pretende, habilidosamente, deixar explícito) não se despenha: flutua no quarto crescente de uma lua fabricada por si com um corpo que não é o seu. Compreendo como é assaz difícil tal exercício mental (tenho tentado vezes sem conta resolvê-lo mas os meus conhecimentos algébricos não vão além de meros rudimentos quânticos e a única vez que me separei de mim, foi por breves milésimos de segundos e a coisa ficou-se pela roupa interior: cuecas e peúgas redopiando no ar e eu deitado na cama*.
Quase em êxtase, o autor descreve o anti-exílio. Nas minhas infantis tentativas, ameaçaram-me com o asilo... Experimentei a cena da margarida com uma Rosa. Tivesse ido mais além no aproximar da "flor" e já ela se preparava para me oferecer uma galheta.

Estou em casa. Embora seja Primavera chove a cântaros.

 
At 30/03/10, 19:14, Blogger Alberto Oliveira comentou...

* Esqieço-me sempre da estrelinha...

São parte integrante da minha pele: as cuecas e as peugas.

 
At 16/04/10, 01:06, Blogger bettips comentou...

Andaria
à procura de flores? das que resistem à chuva
ao gelo degelado?
às palavras pontes de papel?
Abçs
(e falta aqui o verde prado???, mesmo com lama)

 

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