1 de fevereiro de 2010

Um polipeiro de imagens


Seguro na mão uma alface. Recolho várias alfaces. É hora de recolher a casa. Trarei alfaces e tomates. Espera-me a cozinha. Corto cebolas, asso pimentos. Abro frascos com vários condimentos e ervas de cheirinhos. O tomilho cultivado ao pé das rosas. Os coentros e os orégãos que crescem a monte misturados com ervas inominadas numa meia-lua desenhada por uma cercadura de ligustos e loureiros. Nada de sal. Vinagre balsâmico mesmo, mesmo de Modena. O tinto estala na língua. Pão feito durante a noite de feição a encaixar-se num horário bi-qualquer-coisa. O repouso vergiliano sob a copa de um sobreiro.

Abano a cabeça com vigor. Não te deixes levar pelas imagens que te autistam a cabeça e te sedam o corpo: estás a conduzir entre dois lugares, ainda perdes o controlo da máquina que te põe entre a cidade sim e a cidade não, nadificas o interesse.

As imagens vêm de um arquivo que rotulei de passado, mas querem-se fingir de futuras. São simulacros. Só isso: simulacros! Finjo esmagar nos dedos a flor seca do orégão e aproximo a mão das narinas aonde me chega o cheiro fenólico, pungente e quente, a pizza. Quase espirro e a distracção lança-me para cima do traço contínuo da berma da A1. Imagens a roubar a substância do cérebro.

Novo abano de cabeça. Sabes bem que vamos a meio do Inverno, os campos estão um nojo, há árvores por tratar, invasoras por arrancar, campos por estrumar e lavrar. Depois, preparar os camalhões, plantar os pezinhos delicados das plantinhas crescidas em estufa, armar o complexo sistema de rega. Depois vigiar, estacar noites de sentinela, que vem ainda a geada ao arrepio do teu sono, os ventos audazes que levam tudo a arrastar por ali fora, as gralhas à coca das sementes. E tu só pensas nas tardes quentes dos amanhãs risonhos e o teu cérebro escusa-se à tendinite generalizada do teu corpo pesado, carregado de idade. Atenção, abranda. Já te deste conta de como o tempo acelerou. Porque quando eras novo puxavas pelo tempo para que ele viesse depressa.

O volante do carro assegura-me da sua rijeza. Como é rija e murcha esta alface que seguro nas mãos, o molho do tomate não me invade as feridas das mãos cauterizando-as, nem o cheiro do alho se evola como alma penada, nem as cebolas me fazem chorar, nem o sol me tisna a pele como se costuma dizer. Sinto frio. As imagens já são só ideias de imagens. Sinto frio. A alma reduz-se a uma pequena pontada de frio que tenho aqui dentro do peito.

2 Comentários:

At 02/02/10, 18:14, Anonymous Anónimo comentou...

Alma-alface?
Com as modernidades/cidades
enquanto
há o campo.
Abçs da bettips

 
At 02/02/10, 18:21, Blogger Justine comentou...

Perante tal crónica, só me apetece converter-me ao vegetarianismo, fazer da agricultura a minha sina, adoptar o campo como minha terra natal!
Que enorme colheita, se tratares as plantas como tratas as palavras...

 

Enviar um comentário

<< Página inicial