3 de fevereiro de 2010

A portada

Fui despejado no Sítio como carga alijada em alto mar em dia de tempestade. O resto do dia passou-se anémico, envolto em manobras rudes de despejo do carro e arrumações. O frio tomou conta da noite, e o esquecimento de mim.

Acordei já a manhã avançava destemidamente em campo raso pelo dia adentro. Abri de par em par as lâminas da caixilharia em alumínio da portada do quarto que dá para o terraço, onde a vista alcança os raios do nascer do sol filtrados pelo matagal de sobro. As gatas, empoleiradas no topo das ripas que se empilham precariamente sobre o tampo da mesa de teca, nem se moveram, limitando-se a lamber ostensivamente a boca com os olhos imóveis fixados no meu rosto. Que esperem! cogitei. O amor pelas bichanas não é tanto que me levem lá fora, a atravessar mais de trezentos passos de ar congelado, para lhes dar a ração da manhã.

Olho o ecrã da estação meteorológica, brinquedo maravilhoso da feiticeira imaginação da tecnologia sem fios: estavam cinco graus centígrados lá fora, em despropositada discordância com a melífera tepidez do meu quarto. Decido pronto que não saio da cama toda a manhã.

Recosto-me a meia-dúzia de almofadas com o intento de pôr em dia a leitura dos sete livros que acumulam pó na mesa de cabeceira. As marcas lá estavam, certinhas, a condizer com os rabiscos e sublinhados a lápis. Pego num atrás do outro, folheio e recito ritualmente enquanto o espírito se vai albergando noutras alturas acompanhado de imagem e recordações incoerentes e lacunares, de lembretes sobre obrigações tacitamente adiadas. A pilha de livros refaz-se, lenta e novamente, no chão do quarto, sobre o manto das revistas requentadas.



As vidraças da portada, solene gateway para o exterior, são altas e largas, proporcionando deste modo uma visão alargada do arvoredo. Por entre as árvores coleia uma clareira estreita que deixa vislumbrar no abraço de um quilómetro a casa de amarelo creme do Paulo e a casa nova de azul pálido dos vizinhos por inventar. Reparo na qualidade e quantidade de passarada que frequenta o arvoredo. Os melros são, como se sabe, como os gatos, co-proprietários do terreno assíduos e familiares. Deixam-se andar passeando calmamente no chão; empoleiram-se na rede ovelheira como negras sentinelas vigilantes; lançam-se certeiramente sobre as minhocas minhas operárias que absorta e diligentemente processam os resíduos orgânicos do solo. O que mais desperta a atenção, porém, é toda a passarada que parece saída de catálogo de jardim zoológico: uns, pintalgados de verde alface e amarelo canário; outros, bandeiras tricolores de listas castanho-bronze, branco-ebúrneo e azul-palatino; outros ainda, de babete branco imaculado com papeiras alaranjadas. Muitos deles, cuja envergadura nada tem a ver com a da pardalagem, sugerem perdizes voadoras.

Os pensamentos assentam e escondem-se por baixo do edredão quando desperta a gravidade do corpo alertada pelo salto magnífico da Farrusca que novamente se faz ao tampo da mesa de teca. A sua postura evoca a esfinge de Tebas. Enigmática é a postura, enigmático é o olhar. A vidraça da janela refaz-se, novamente, como objecto; as imagens entrevistas na transparência evanescem. Como um ecrã que se tivesse apagado.

6 Comentários:

At 03/02/10, 14:31, Blogger Licínia Quitério comentou...

Rui, tens por aqui uns textos magníficos a que eu, desatenta e preguiçosa, não tenho prestado a merecida vénia. Estive agora a lê-los e a saborear-lhes a forma e o sentido. A reinvenção do campo como lugar de repouso da mente versus cansaço do corpo. O relato minucioso e aprimorado dessa natureza bravia em luta com os afagos domesticadores. O homem culto e cultivador, numa mescla de erudição e experimentação. E mais - uma fina e algo amarga ironia na apreciação dos elementos naturais e dos comportamentos animais.

Gostei de ler a tua referência à "cidade sim e cidade não", tema de um formidável poema de Yevtuchenko que gosto muito de dizer.

Um abraço, Amigo.

 
At 03/02/10, 15:43, Blogger Justine comentou...

E adormeceste de novo! Mas a Farrusca, tenho a certeza, não deixou que esse sono suplementar fosse muito longo. Os gatos têm razões que o nosso descanso desconhece...

(Continuas a oferecer-me umas fulgurantes, suculentas, admiráveis sopas de letras...delicio-me a saboreá-las!)

 
At 05/02/10, 18:02, Blogger São comentou...

Gostei de vir até aqui.

Bom fim de semana.

 
At 05/02/10, 21:57, Blogger Rosa dos Ventos comentou...

Um texto delicioso!
Meia-dúzia de almofadas para sete livros?
Quase uma por livro...
Se as tuas gatas dormissem em casa não te deixavam ficar na cama até tão tarde! :-))

Abraço

 
At 06/02/10, 14:41, Blogger bettips comentou...

É assim e como, sinto que tens os (dois) pés numa terra que te conquistou, lentamente; e pássaro a pássaro, gato a gato, letra a letra. Tua.
Tão simples (re)ler a Natureza que ela não pede mais que ser aceite.
Bjinhos

 
At 08/02/10, 20:09, Blogger Alberto Oliveira comentou...

Quem aqui aporta, não tem volta a dar, tal o cenário (exterior) descrito. Manda a cidade às malvas. Já sabes que não sou gajo de elogios porque não fui treinado para tal e detesto fazer figuras parvas em público. Mas desta vez abro uma excepção: esta coisa está cinco estrelas, quatro planetas, três sóis e não tem buracos negros.

Abraço.

 

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