1 de maio de 2008

Homicídio num blogue

Anda o Gervásio extremamente preocupado com as minhas viagens!

Estive realmente fora durante muito tempo. Viajei. Primeiro para norte, depois para sul. Antes saudável, após doente. A travessia da Argélia para a Líbia foi extenuante, muitas vezes a pé, o que nas boas estradas da Líbia não é problema salvo quando se deixam tapar pela areia do deserto. Acabei doente, quase a morrer, garante o Gervásio. A morrer estou todos os dias pela razão elementar de estar vivo.

O Gervásio é um bom companheiro. Como toda a gente, uma pessoa peculiar. Muito peculiar mesmo. É um sui generis, embora ache que o género tem exemplar único. É o que se pode chamar uma pessoa prestável, uma pessoa a pensar sempre nos outros.

Conhecemo-nos profissionalmente quando prestei serviços de consultoria estratégica para a empresa dele, uma firma promotora de eventos culturais e desportivos. Conversas a desoras, fê-lo interessar-se pelas minhas ideias. O interesse, de mistura com muita generosidade, trouxe-o para uma convivência de uma tão grande intimidade a ponto de pegar nos meus caixotes de 5 resmas de papel de impressão quando cheios, atafulhados de manuscritos, dactilografados e printados e levá-los consigo para Lisboa para classificar e tratar de acordo com o seu espírito analítico e metódico.

Apesar de católico e monárquico, com PHD obtido na universidade etarra da Opus Dei, compreendeu facilmente as minha crítica ao monismo e a minha proposta de uma topologia alargada. Outra coisa não seria de esperar de um homem recto, isento e de espírito aberto.

Às vezes digo-lhe: "Ó Gervásio, deixa lá a minha papelada e arranja, mas é, uma mulher!". O Gervásio ri-se nervoso e escusa-se dizendo que é ainda cedo. Que tem muito tempo!

Mas voltemos à minha viagem. Todo o mundo está de acordo: sou eu quem viaja, certo? Mas o Gervásio vai atrás de mim, como se eu, sendo Perdido, me perdesse. Eu sei que ele gosta de viajar, o negócio dele a isso o obriga. Mas mais adora andar no meu rasto, não sei se feito cão perdigueiro, se Sherlock Holmes. É a sua maneira de se perder, procurando-me. Acho que há nisto algo de lúdico. Eu acho! Mas não é tudo.

Andava eu há tempos aí, a ler uns posts e uns comentários em blogues alheios, quando descobri um interessante comentário do Gervásio:

"Quanto a mim, que sou solteirão, não vejo problema nisso. Desde que o solteiro não dê em solitário por entre as gentes. Tempera-me este jeito e esta conveniência de ser solteiro a inúmera quantidade de amigos e a excelsa qualidade de o serem. Preenche quase a minha existência (no sentido etimológico de ex-sistência) a grande amizade com Perdido, a sua esposa e filhos. Para além de um mestre e objecto dos meus estudos é um grande amigo que, infelizmente, anda perdidíssimo de perdido aí para as suas bandas.
Se tiver a oportunidade de o encontrar, tenha a bondade de nos dar notícias porque andamos já preocupados com a sua ausência.
Creia-me um seu admirador com quem espero partilhar da amizade. "

Isto é mais do que parece. E a mim, quando cheira a esturro, é esturro mesmo. Acreditem que tenho um bom olfacto.

A dona do blogue é médica lá para o Norte. Com 33 anos é ainda solteira. E morreu-lhe o amigo há pouco tempo.

Sempre que lia os seus escritos, muito interessantes, não podia deixar de observar um elevado grau de ingenuidade na balzaquiana que me lembrava a das rapariguinhas de 18 anos da minha geração, coisa que eu há muito já não via. A interioridade não explica tudo, e a senhora já tinha andado numa faculdade de medicina para além da raia e era viajada. Cedo ficou órfã sob os cuidados de uma avó. Mas escrevia romanticamente como escreveria a Joaninha das Viagens na Minha Terra.

Ora soube entretanto que o Gervásio fora à minha procura lá para o norte. Seguindo "a pista da médica", dizia ele.

Ultimamente tem andado muito leve, a planar, quase não põe os pés no chão. E canta, o que não é hábito nele. Os olhos brilham nele. Já pouco trata dos meus escritos antigos a pretexto de que não tem muito tempo e das suas saídas profissionais para o Porto.

Esteve na semana passada comigo no Cartaxo. Nesta altura, a água dos deuses desta terra jorra a escâncaras para as nossas gargantas e as almas abrem-se como as pétalas das gazâneas ao sol.

Estava na altura de apertar com o Gervásio. E o Gervásio cedeu. Ainda hoje me riu com a atrapalhação do meu amigo.

Saíu, pois, de Lisboa, num estado de absoluta virgindade, preocupado comigo e disposto a dar tudo por tudo para me encontrar. Foi, na " pista da médica", para o Norte. Não sei os detalhes, mas sei que correu todos os hospitais transmontanos, lá a descortinou, seguiu-lhe a sombra.

Houve umas peripécias a que eu gostava de ter assistido - soube a coisa por alto - até meteu a guarda! A doutora, ao sentir-se perseguída naquelas estradas ermas que a levam ao seu monte, não foi de meias medidas e telefonou para os gendarmes. Como é conhecida e muito estimada na terra, saiu a corporação toda a bater mato na caça ao facínora. O coitado do meu amigo apanhou cá um susto! No fim tudo se esclareceu. Ele já era o amigo da dra. Mafaldinha. E almoço para cá, jantar para lá, acabou tudo em ceia na casa do monte.


Talvez os leitores gostassem de ter mais pormenores a partir deste ponto da história. Metam-se nas vossas vidas, é o que eu lhes aconselho.

À guisa de epílogo, a doutora tinha um amigo imaginário com quem saía de viagem, sabia-se pelos seus escritos no blogue. Quem não gostava disso era o Gervásio que andava moído de ciumes.

Um dia destes decidiram matá-lo.

1 Comentários:

At 07/05/08, 13:29, Blogger Maria Carvalhosa comentou...

As coisas que tu inventas!... Aquilo que acreditas saber e o resto que imaginas, para compôr a "estória". E o mais engraçado é que "quase sem saber ler nem escrever" (passe a expressão), acabas por acertar numa mão-cheia de semi-verdades (também existem, sabias?). Creio poder falar com conhecimento de causa porque sinto que conheço intimamente a Mafalda... (poderei estar redondamente enganada... vá-se lá saber!) Quanto ao teu amigo Gervásio, é um facto que ela me falou dele, meio "en passant", o que me deixou com a "pulga atrás da orelha", porque me pareceu um pouco constrangida ao abordar o assunto, como quem tem algo que não pretende revelar, e, rapidamente, mudou para o tema das rosas. Achei estranho, mas não forcei... Cada um domina aquilo sobre que quer falar e, do mesmo modo, quando, em que circunstâncias e através de que meio... respeito isso, naturalmente.

Apreciei o teu obituário, "in memoriam", pois!

Um abraço meu ao Gervásio quando estiveres com ele.
Beijos para ti.

 

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