22 de maio de 2008

Eu falador me confesso...

Não sou escritor encartado, não tenho a formação adequada, nem pago a quota ao sindicato, ou à ordem dos escritores. Então por que escrevo?

Em termos sociais, sou um fala-barato desconversador e um truculento desmancha–prazeres.

Quiseram os fados que viesse a encontrar-me sem actividade geradora de rendimentos e, então, decidi desvendar os caminhos do ócio.

Foi dizer e fazer: da fala passei à escrita.

Logo que surgiu a oportunidade, converti-me num neo-rústico (1) activista e instalei a internet no centro do jardim e da horta.

A família só me acompanha aos fins-de-semana e adere ao campo por motivos pouco mais do que higiénicos: em vez do picnic a caminho da Ericeira para apanhar ares e tingir a pele de bronze e recuperar do desgaste do dia-a-dia da grande cidade, a romaria é para o Cartaxo, a meia-hora do fim da segunda circular, com estadia paga na casinha modesta, mas confortável, ares tão puros que são de estoirar os pulmões por falta de hábito e o contorno bucólico das rosas a florir, da passarada a chilrear, dos peixinhos a nadar no lago e da rã a coaxar. Um bosque frondoso de sobreiros garante sombra fresca na canícula e abrigo para apreciar calmamente a vinhaça da região a acompanhar o grelhado de carnes variadas.

No resto dos dias que ali passo escasseia a companhia humana. Natural seria que os passasse a falar com as paredes, ou com a própria sombra, mas paredes poucas há e a sombra, quando se digna aparecer, vai sempre à frente dos nossos passos parece que a fugir-nos da conversa.

À míngua de ouvintes de orelha atenta e esclarecida, pus-me de diálogo com os gatos vadios que me atravessavam o terreno com um despudorado desprezo pelos marcos e vedações com que nós assinalamos a propriedade e que eles mapeiam com mijos e outros odores lá do seu entendimento. Conversadores argutos e manhosos deram-me baile à fartazana.

A assistência tem sido variada e pouco assídua, não fosse o mais fundamental dever ético de um bichano demonstrar a sua liberdade! Quando o humano der provas suficientes de compreender o todo da situação – que a liberdade é ponte assente e inegociável – podem, então, as duas espécies firmar todos os contratos e quebrá-los todos os dias. Gera-se então um clima de conjugalidade, que tem o bom do companheirismo e dedicação devotada ao outro, sem as anilhas e as trelas tanto ao anseio das pessoas inseguras.

Foi para os gatos que comecei a escrever.

Sendo animais muito inteligentes, mas incapazes de fala por condição genética, têm uma compreensão global assaz satisfatória de uma frase. Uma frase é para um gato como o rosto humano para um bebé ou uma melodia para um pássaro. Quanto às palavras, nem entendem a sua natureza, nem o seu significado: são recortes artificiais, como um olho ou uma boca para um bebé, um detalhe insignificante de um todo significativo.

É claro que se encontra entre os gatos diferenças individuais: O An Jie profundíssimo a entender o mínimo movimento emocional, pronto a captar o interesse da pessoa, a reconfortar e criar prazer, a gerar novas situações sociais e pronto a encontrar e explorar aspectos positivos na adversidade. Um líder! O Tigre, filósofo antropólogo, a forçar o entendimento das coisas humanas mesmo naquelas áreas sinuosas em que os humanos se perdem e que desistiram de querer entender. A Julieta, mãe coragem, celebrante exímia da única divindade que não cobra nem exige nada das suas criaturas, Geia, a grande mãe-útero, mãe-sepultura.

A diferenciação gera a diversidade e as riquezas de que um ser vivente precisa. Daí que as minhas conversas com gatos nunca tiveram limitações de tema, imposições de estilo, constrições gramaticais ou aderências a modas. Tive a felicidade ou a sorte de ter os leitores antes de ser escritor e fazer a escrita. Os assuntos, o fio condutor, a trama, as perguntas a fazer e as respostas a satisfazer, a selecção do léxico a empregar, tudo foi previamente discutido, analisado, ponderado e seleccionado.

Ao primeiro pedido do Tigre, “explica-me o que é uma palavra”, só tive o pasmo para resposta. Recorri depois a subterfúgios para esconder a minha ignorância, como puxar de alguns conhecimentos selfmademan de etimologia românica e falar-lhe de movimento (“motus”), parábolas (“parabolae”) ou limites (“termini”). Desse que resposta desse, cada uma gerava uma nova fileira de perguntas, cada vez mais embaraçosas. Palavras como “casa”, “carro” ou “lata” (de comida) ainda iam: era uma questão de saber “apontar” para o lugar das coisas. Não apontar com os dedos, atitude que um gato considera grosseira e agressiva; nem olhar de frente, outro sinal de rudeza, de falta de maneiras. Mas “apontar” no sentido de estabelecer uma ponte entre as palavras e as coisas por elas representadas.

Para um gato é fácil perceber a representação. Qualquer gato, por mais safardana ou pindérico que se mostre, é um representador nato. Usar uma mosca, uma folha de árvore ou mesmo uma sombra para fingir a presença de um rato é uma brincadeira que os põe de cabeça perdida. Brincar com um novelo de lã é uma forma análoga de representação, mas mais abichanada, do gato urbano.

Entender palavras que representam coisas, os gatos lá as vão entendendo. Nos casos em que as palavras, os nomes, representam pessoas, ainda melhor. Não houve um único gato das dezenas com que lidei que não respondesse ao nome que lhe tinha posto.

Mas que dizer de palavras como ética, religião, economia, trabalho, política, história, ciência, filosofia? Ou liberdade, igualdade, fraternidade? Ou IVA, IRS, POC, EU, NATO, ASAE, ROE ou quejandas? Ao fim e ao cabo são palavras que os humanos só conhecem ao fim de muitos anos de escolarização ou de exposição aos media e que dá como resultado final um ror de desentendimentos quase sempre a acabar à cacetada. Veja-se a palavra “deus” que é sempre invocada pelos dois lados da beligerância, quer em termos de justificação, quer em termos de garantia de protecção e de vitória. Como explicar tudo isto a um gato que não se contenta com explicações simplistas? Há primeiro que explicar isto a nós próprios questionando todos os fundamentos do nosso saber.

Foi esta necessidade que fez de mim um escrevinhador.

(1) O termo, saboroso, foi tirado de um conto, igualmente saboroso, de Hélia Correia.

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1 Comentários:

At 31/05/08, 18:46, Blogger golden comentou...

acontece que detestamos gatos.

desculpe!

 

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