1 de abril de 2008

Teatro anatomico di Padova no Sítio do Tremontelo

Já tinha na minha posse as instruções para o utilizador, mas precisava de outro manual de índole técnica que descrevesse os componentes e acessórios com os respectivos partnumbers. Este objectivo satisfazia duas necessidades imediatas: a primeira, identificar e conferir os componentes instalados, avaliar o seu estado de funcionamento e decidir pela eventual necessidade da sua substituição; a segunda, ter qualquer tipo de referência para encomendar as peças, se preciso fosse, pela net. O que disse para os componentes era válido também para os diversos acessórios existentes numa caixinha na gaveta, todos eles destinados a substituir o pé calcador para executar, presumia, e bem, operações de costura diferenciadas que para mim constituíam um nebuloso mistério.

Ao cabo de algum tempo, alimentado a paciência e motivação, lá tirei das águas internáuticas, a espernear e a mangar com as minhas parcas forças debilitadas pela longa espera, a Illustrated List of Parts for Nos. 15K88 to 15K91 Machines (a Trade Mark of the Singer Manufacturing Co.).

Em primeiro lugar, na preparação da preciosidade que tinha acabado de pescar, tive que fazer um trabalho compenetrado e muito rigoroso de assinalar as partes que respeitavam exclusivamente à 15K88, notando que alguns desses componentes apresentavam inúmeras versões, o que inevitavelmente conduziria a um trabalho comparativo ulterior in presentia. A lista está organizada em três partes: apresenta inicialmente um conjunto de prachas numeradas contendo cada uma diversas peças numeradas; depois, os componentes e acessórios por grupos de máquinas identificando-os nas respectivas pranchas; finalmente, a lista completa por ordem numérica.

Com o trabalho de casa feito, o trabalho da casa em Lisboa, esperava-me outra noite passada em branco lá para as bandas do Cartaxo.

Não vou deixar em suspense os leitores destes meus pensamentos à toa. Para desassossego, basta o que basta! Passemos já umas longas horas adiante.

Feitas as arrumações da tralha transportada de Lisboa para o Sítio, a preparação e o consumo do jantar e a ménage postprandial da cozinha, cumprido o santo (?) sacrifício do telejornal da 2, fiz a ascensão ao piso supremo. Lá estava ela, no canto do mezaninho, devidamente recoberta com os paramentos com que viera. Dispus os manuais, os apontamentos, o caderno de notas e dois lápis bem afiados na secretária ao lado, empurrei o móvel para o centro do teatro anatómico e acendi os holofotes. The show must go on!

Com os cuidados devidos, desentranhei a máquina do seu covil no interior do móvel e erigia-a à posição normal, onde ficou, hierática e resplandescente. Preparei as ferramentas indispensáveis à operação que se seguiria, devidamente alinhados por alturas e calibres, num pano que estendi no chão que tinha ainda espaço suficiente para receber as peças desmontadas, dispostas pela sua devida ordem.

A mente cavalgou em vertigem desenfreada pelos desertos africanos, atravessou as florestas equatoriais e as savanas e começou a accionar o sistema de travagem a quase um quilómetro do sítio onde foi aterrar. Estava no meio da clareira da mata a meio da noite, a Lua Cheia africana a banhar aquilo de luz silenciosa, um silêncio inabitual que nem grilos nem relas ousavam desafiar, a não ser os mosquitos, esses vampiros maçadores e costumazes. Os tiros do lado de lá, aquele matraquear de costureirinha das Kalachnikovas acompanhado do crepitar fugaz, pararam, como tinham parado um quarto de hora atrás para depois recomeçar. Eu suava em bica, ajoelhado sobre o pano de tenda, a tentar desencravar a minha espingarda automática G3 (produzida na Fábrica de Braço de Prata sob licença da Heckler & Koch). Agora reduzia-se a um amontado disperso de componentes que desmanchara automaticamente, gesto tantas vezes repetido em Mafra, de olhos vendados no interior do Convento, ou em noite de Lua Nova algures na Tapada. Com o pano de limpeza esfregava metódicamente o interior dos 450 mm do seu cano e, com o mesmo rigor metódico, voltava a sua alma na direcção da Lua para inspeccionar a regularidade e a limpeza das estrias que garantiam uma velocidade de saída do projéctil (calibre 7.62 × 51 mm NATO) de 790 m/s.

Lá estavam no pano o mecanismo tensor da linha da agulha, a caixa da bobina, o pé calcador, a lançadeira, as molas, os parafusos, dispostos correctamente e convenientemente limpos. Registei no bloco de notas as peças que deveriam ser substituídas, voltei a montar tudo e comecei a lubrificação geral.

A lubrificação é, mais do que uma actividade operacional, um culto quase religioso, uma unção sagrada, um crisma. O primeiro cuidado do celebrante é conhecer todos os pontos a lubrificar. Tratando-se geralmente de orifícios, deve introduzir o bico da almotolia no ângulo correcto e bombá-la o número de vezes e com a pressão requerida de modo a que o óleo cai suavemente nas peças mais sensíveis. A lubrificação não se faz à vista do oficiante, ocorre no segredo interior da máquina; por isso, requer conhecimento e muita imaginação.

Com ela lubrificada, coloquei as linhas com o à vontade do expert, seleccionei um dos vários panos que tinha ali à mão, coloquei-o sob o pé calcador e baixei a alavanca. Puxei o volante na minha direcção, a agulha começou o seu vai-vem, os pés acompanharam o seu movimento no pedal. Truca-truca, truca-truca, truca-truca, ..., lá ia o pano correndo debaixo da agulha como se uma mão invisível o estivesse puxando.

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1 Comentários:

At 09/04/08, 02:37, Anonymous Anónimo comentou...

Muito gosto eu de te ler... é com deleite que o faço, Yuri. :)
Bj,
lua moura

 

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