31 de março de 2008

A primeira noite com a máquina de costura

Imaginem um pacóvio estirado na cama ao lado de uma boazona, certificada nessa qualidade por sufrágio universal, a ler a página de Economia de um diário qualquer. Assim me olhava especularmente, dividido, como Platão, entre a máquina e o manual, o concreto e o abstracto, a carne e o espírito, o exemplar e o modelo. Não tinha o terceiro caminho de Parménides e os dois cavalos fogosos da minha charrete divergiam como loucos entre os caminhos do ser e do não-ser, indistintamente de saber o que era o quê como oposto a não sei quê.

A intuição cega levava-me a uma Ding an sich intransponível, um ser fetal irreconhecível recolhido sobre si próprio impermeável ao conhecimento. Pelo contrário, a leitura afastava-me fisicamente do objecto, por um lado, mas aproximava-me dele, por outro, através da linguagem. Aquela sewing machine n.º 15 tinha uma cama, um volante e um braço, tinha barras, pinos, alavancas e parafusos. Cada um destes pormenores ia emergindo da sua existência subterrânea e inconsciente para a claridade do ser à medida em que o manual mo permitia etiquetar. Sendo o manual velho e mal digitalizado, as legendas eram um agregado de quadrados negros que se iam encavalitando e empastelando à medida em que as palavras se distorciam para fora da horizontalidade da linha de leitura. Com o editor de PDFs pus as legendas em letra de gente e, em alguns casos comedidamente deliberados, aventurei-me a uma arriscada tradução auxiliado pelo meu Como Fazer (quase) Tudo.

Os nomes tinham-me dado acesso às diversas partes da anatomia da máquina. O conhecimento das partes anatómicas permitiu-me uma lenta, mas conseguída, iniciação às actividades que se podia realizar com cada uma.

Na gaveta do móvel havia, entre várias bugigangas, um ferrinho de pequenas dimensões. Aquilo tanto poderia servir para tirar a cera dos ouvidos como de suporte para as prateleiras amovíveis das estantes da biblioteca. Um objecto daqueles carece de um orifício para enfiar, é o que logicamente se extrai do seu formato. Lembrei-me dos orifícios dispostos em linha recta no dorso da máquina. Verificando a figura, conclui tratar-se do spool pin, o pino para suportar o carrinho de linhas. Encaixava mais ou menos e aguentava um carrinho de linhas de alinhavar que encontrei na caixa da costura, de que me socorria amiúde como substituto do fio dental. Agora, havia que esticar a linha para a esquerda e fazê-la passar, com a ajuda do manual, por uma série de angústias e desfiladeiros até desaguar no buraco da agulha. Mas qual agulha? Encontrei umas três ou quatro com um ar já muito usado num tubo metálico de charuto. Aliviei o grampo da agulha, introduzi esta na vertical espetando-a até ao fundo, e manipulei o parafuso no sentido contrário para a manter bem presa e posicionada. Difícil foi enfiar a linha. Com imaginação improvisei uma daquelas geringonças de dentista com espelho e luzinha e fiz de conta que brocava um dente cariado. Lá entrou mas saiu num parco instante porque, o pezinho nervoso não parando de dedilhar o pedal, levantou-se a alavanca e todo o fio recuou ficando pendente e murcho como uma minhoca flácida na cana de um pescador. Mesmo assim fiquei contente porque o saber fazer já é um princípio de saber; com a prática vem o saber fazer bem à primeira. Mas isso já é o saber completo.

Etiquetas: , , , ,