31 de março de 2008

Linhas cruzadas na vida e na máquina de costura

Outro objecto que havia lá na gaveta identifiquei-o, através do manual, como sendo a caixa da bobina. Esta pequena coisa metálica de curvatura polida e luzidia, que segurava nos dedos da mão esquerda na maneira como instruía o manual, estava-me sempre, e inconvenientemente, a escorregar para o chão.

Segundo o manual, deveria introduzir a bobina com linha na sua concavidade segundo um procedimento que adiante explicarei. Colocava-se-me entretanto a questão de saber como encher a bobina com linha idêntica à do carrinho. A bobina, que a minha amiga Isabel disse, uns dias mais tarde, chamar-se a canela, é como um pequeno carro de linhas, mas achatado e metálico. O manual ensina a utilizar o rebobinador da máquina para encher as canelas. Primeiro há que destravar o volante para isolar o seu movimento do resto do da máquina (stop motion). Põe-se o carrinho de linhas num pino existente na cama da máquina e faz-se passar a linha até ao rebobinador onde se colocara previamente a bobina vazia. Dando sucessivas voltas ao volante a linha vai-se enrolando na bobina, ora num sentido, ora noutro, até obter o enchimento pretendido. O resultado do enrolamento é perfeito, juro que fiquei espantado.

A bobina cheia é então introduzida na caixa da bobina deixando uma ponta de linha de fora. Nesta operação, segura-se a caixa com a mão esquerda e a bobina com a direita. Não percebi se o procedimento é idêntico para esquerdinos. Mas como isso é irrelevante para o meu caso, tentei reprimir firmemente esses pensamentos distractores. A seguir, pega-se na ponta da linha sobrante que, passando através de uma ranhura, vai sair no lado oposto.

Puxei para a esquerda a chapa deslizante da cama da máquina (bed slide) e introduzi a caixa da bobina no local apropriado, certificando-me de que tinha ficado devidamente acondicionada e presa.

O processo de costura numa máquina supõe o encontro de duas linhas que se cruzam no tecido: vinda de baixo, a linha da bobina; vinda de cima, a linha da agulha. Assim parece a costura do tecido das nossas vidas em que se cruzam as linhas da necessidade e do acaso.

Olhei para a máquina e concluí, depois de várias meditações pessoais e evocações de filosofemas pré-socráticos, que a linha da bobina teria de subir através de uma grelha por onde passava a agulha no seu movimento de picotar. Com os dedos demasiado grossos para aqueles espaços exíguos e elementos delicados, desisti após muitos esforços. E acreditem que sou teimoso. Muito teimoso.

Vindo de uma profissão cujo core foi a informática, ficou-me nos hábitos uma deformação profissional que consiste em passar sistematicamente por cima do manual. Ao fim de alguns anos de prática tudo é igual. Mesmo o que é novo, é sempre mais do mesmo. O que dá para uns casos dá para os outros. O único cuidado a ter como medida de segurança é copiar antes de mexer. Estragou, repõe-se. A evidência sobrepõe-se à razão. O manual só é usado como último recurso, depois de todas as tentativas falhadas, depois de inquirir todos os especialistas da respectiva matéria, depois de dias perdidos à deriva na net.

Lá fui ao manual que simplesmente dizia para deixar a linha da bobina caída. “De doidos, só pode!”, pensei.

Baixei a alavanca do pé calcador e comecei a pedalar. Ao fim de três passagens da agulha, as duas linhas estavam em cima da cama da máquina.

E eu ali, estúpido, a olhar para elas.

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