5 de janeiro de 2011

Quadros (9)

A uns quilómetros dali, na outra margem da estrada, o mocho encontrou a criança.
- Olá, criança, o que andas aqui a fazer sozinha? - Perguntou o mocho movido por uma mistura de curiosidade e de ternura.
- Apanho florinhas, senhor mocho. É para dar à minha mãezinha...
- E onde está a tua mãe, criança?
- Está naquele monte - apontou - onde as pessoas ficaram todas a fazer ó-ó no chão quando o tempo se rachou ao meio e apareceu tanta luz.

O mocho, que até aí só coçara a cabeça, ficou petrificado e sentiu gelo dentro de si.
- E que vais fazer a seguir?
- Vou procurar a minha mãe, vou-me sentar ao lado dela à espera que acorde e vou-lhe dar estas lindas flores - e apontou para as flores que tinha na mão. - E ela vai ficar contente, e vai dar-me muitos beijinhos, vai puxar a minha cabeça para o colo dela e vai fazer-me muitas festinhas.

O mocho ficou sem saber o que fazer. Ainda pensou em dar o alerta à águia e pedir-lhe que lhe fizesse um ponto da situação de como corriam as coisas lá para Leste. Mas como contactá-la agora que ela andava sempre em missões complicadas e prioritárias? Como não podia deixar a criança ali, entregue aos seus próprios cuidados, assobiou no sentido contrário ao do vento e, passados curtos instantes, ouviu o restolhar no chão: era a cobra que respondia ao seu apelo.

Depois de um relato breve, pediu à cobra:
- Tens que tomar conta da criança e levá-la para o acampamento. Entrega-a aos cuidados da gata.

Dito isto, lançou-se em voo ascendente e perdeu-se no horizonte, por cima da rama das árvores.

A cobra fitou a criança nos olhos e disse-lhe em tom firme, mas carinhoso:
- Vem comigo ao nosso acampamento para conheceres amigos. E vais comer alguma coisa, senão a barriga cola-se-te ao peito. Depois, trataremos de encontrar a tua mãe.
- O que são amigos? - Perguntou a criança à serpente.
- Amigos... ? - A pergunta era tão embaraçante que até doía. De pouco serviria dar uma definição por condição necessária e suficiente, ou mesmo por género e diferença específica. Mesmo que tivesse o talento para conseguir tais definições... Por ironia, a cobra achava-se muito terra a terra. Podia tentar dizer-lhe que era parecido com, mas não se lembrava de nada que se parecesse com a amizade. Podia dar-lhe alguns exemplos, mas os que lhe passavam pela cabeça não estavam ao alcance dos conhecimentos de uma criança. Há coisas que toda a gente sabe o que são e que não se explicam. Mas as crianças são assim mesmo: não sabem, mas querem saber. E não se demovem até saber o que querem. E quando ficam a saber, nunca mais querem saber disso. Quer dizer que cresceram, que perderam a frescura matinal. Só muitos anos mais tarde, quando estiverem novamente ao cuidado dos outros, é que vão parar outra vez para indagar de novo. Tudo. Radicalmente.


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