12 de maio de 2014

O silencio

Nesse afã de dar vida aos detalhes não há exigência maior do que esta de dar voz àquilo que não a tem: o silêncio.

Não me refiro ao silêncio cósmico. Se a nossa imaginação mergulhar nas profundezas do real verá um número incontável de esferas rodando sobre si próprias ou cirandando em torno umas das outras; se recuarmos para um ponto de visão afastado e ensombrecido, essas gigantescas esferas convertem-se em grãos de pó quase invisíveis mas, agrupando -se, nas massas leitosas que sabemos ser galácticas. E a todos estes objectos celestes vemo-los a girar encaixados uns nos outros como rodas dentadas engrenadas umas nas outras. E a experiência das coisas mecânicas do nosso dia a dia leva-nos a crer existir aí, para uns uma ensurdecedora e tonitruante cacofonia, para outros, mais crentes numa ordem pre-estabelecida, uma harmonia celestial. Mas isto não é música, é poesia. O universo é importando-lhes as deixasmudo. E mais: é surdo.

Aqui no Tremontelo reina o silêncio. Não que não haja sons. Por exemplo, ao longe, para nordeste, ouve-se o ruído do motor de uma máquina agrícola. É o silêncio que permite ouvi-la, de outra forma estaria mascarada por detrás de outros sons que se lhe sobrepunham e a incorporavam. À minha direita, num sobreiro enorme, um pássaro qualquer ensaia os seus trinados de uma forma tão meticulosa como a de quem esfrega os dentes à escova. Na rotunda dos cedros, em cima do carvalho em tempos mutilado pela tempestade, outro executa um solo policromático com a seriedade de um performer operático. Um pouco por todo o lado, a passarada assiste-lhes as deixas. O galo faz intervenções esporádicas. A abelha ciranda na sua azáfama zumbindo. As moscas mantêm aquele barulhar chato e irritante que desperta em automático o chicotear das caudas das vacas. Tudo isto é silêncio, nada perturba o trabalho, nada desvia a atenção, a irresponsividade é tão grande que chega a dar em sono.

Eis que, de súbito... 

Isto é, claro, uma frase desgastada, sem um sentido reflectido, que tem um papel análogo ao das frases feitas musicais dos filmes de terror da terceira divisão: preparar o susto. O que resulta: uma vez o susto preparado, a pessoa assusta-se porque foi preparada para se assustar. A nossa política doméstica está cheia destas coisas. Frases ocas, polidas à superfície. Ver a retórica de Passos Coelho, um clássico de marketing político cheio de estilo. Este prepara o susto e logo o alívio. Às pessoas dá-lhes aquele baque que suspende a respiração e põe o coração a badalar à doida. O sofrimento sente-se. Não é logo claro, sê-lo-á brevemente, nas contas, no cheque mensal. Quando há, claro. Depois o alívio. É a economia que está a melhorar e mostra-se os pequenos incrementos, ocultando o fenómeno de bola de pingue-pongue que saltita quando bate no solo e vai esmorecendo até morrer. São os mercados que concertadamente baixam os juros dizendo que somos dignos de crédito, ou quase, o tempo o dirá. E afiam a dentuça para a enterrar no pescoço da vítima. Mas alívio virá, está prometido, como o Messias, o D. Sebastião ou o Armagedeão. É complicado saber para quando, é uma questão de datas e é preciso saber interpretar os números, ou é uma questão nublosa e é preciso dominar a previsão meteorológica. A economia não é uma ciência certa, é uma arte de extorsão certeira.

Eis que, de súbito... 

O silêncio desfaz-se, a atenção dissolve-se, o ouvido apura-se. É preciso recompor o corpo na cadeira, é preciso desviar a cabeça na direcção que nenhuma decisão autónoma impôs. De súbito, um barulho, apesar de diminuto, um barulho, a recusa gratuita e ostensiva do silêncio. Olhei, claro, e vi. Duas folhas secas de sobreiro rodopiavam ao vento no chão do alpendre. Pareciam loucas, um casal apaixonado ou em transe místico, mas claramente que seguiam cegas a ordem natural das coisas, sem emoções, sem sentimentos, sem desígnio próprio ou alheio. 

A Farrusca deve ter sentido a minha inquietação. Despegou do sono metafísico a que se vota por tempos prolongados, veio sorrateiramente na minha direção, esticou a cabeça para a afagar e começou a ronronar.

Voltei ao trabalho, a Farrusca ao seu poiso e o silêncio reinstalou-se.

1 Comentários:

At 13/05/14, 05:45, Blogger magix comentou...

Tudo é silêncio, menos as duas folhas apaixonadas a dançar no solo...muito bonito, contigo ouvimos os silêncios que nos transportam e ajudam a pensar. E fico contente que a farrusca continue atenta e meiga, uma amiga, mesmo, no seu silêncio de velha sábia. Venham mais posts a quebrar o silêncio do tremontelo!

 

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