22 de novembro de 2013

Reencontro



Tal não me acontecia há muito: uma calanzice inexplicável.

Após uma noite de sono curta, acordo com as primeiras clarezas do dia novo. Uma aclaração modorrenta de dia empastelado. Abro as portas de par em par e sinto a Farrusca pular do seu poleiro almofadado por cima da carcaça da velha lareira a pellets, que estorva no alpendre mas dá guarita à peluda que, no seu posto, me vigia as entradas e saídas. A cauda erguida, é sinal da dopamina que lhe endoidece o cérebro com a expetativa a realizar-se de comidinha e afagos. Põe-se a ronronar sabendo, de saber bem animal, que a oxitocina em breve me invadirá em golfadas, como a que sentem as amiguinhas que se encontram, também para descoser nas costas das outras, mas sobretudo pelo prazer que tiram de estar. Com o Agnus é outra coisa: Põe-se à distância com uma enorme carga de serotonina a desafiar-me o poder do género e do estatuto. Problema de machos, sobretudo de alguns com muitas coisas pouco ou mal resolvidas, que o torna um toleirão, com o sorriso cínico do jovem que de jota, num jato, se tornou primeiro ministro. A paparoca só é distribuída após a abertura das três pares de portadas do alpendre. Com a Farrusca fazemos aquele jogo em que ponho a mão a tapar o seu comedoiro cheio e ela me dá marradinhas afetuosas para a afastar. O Agnus observa à distância. Só mais tarde, a Pantera aparece a correr. A Laranjinha essa fica-se, como as velhotas da aldeia, arrimada à porta da cozinha - maneira de dizer. Nessa altura, já ganhei para o dia e, para não ganhar para sustos, lá me vou ao lazartan, que tomo com um kivi muito maduro e um copo de água. Depois, acendendo a máquina do café, já realizei tudo o que há de importante de preparação para o novo dia.

O que houve hoje foi um desacerto completo da rotina quotidiana. A chuva, já na véspera, apanhou-me desprevenido, encharcando tudo o que se abrigava sob o céu antes descoberto. O pio foi não ter lenha recolhida para me alimentar a salamandra. De manhã deu-me um não sei que estado de alma que me deixou mole e a querer voltar para a cama. Com o iPad travado em portrait e três almofadas sob a nuca, lá me fui alienando em postagens e repostagens, gostos e não gostos, comentários e descomentários, naquele desinteressante perder de tempo que é o Face, a religião da modernidade, ou pósmodernidade, tanto se me dá, que é como a diferença sem interesse entre a menopausa e a prémenopausa, pois se a essência da religião é o re-ligar, nunca nada antes religou tanto como religa o Facebook. Ora et labora, pois sou o bom "monachos" do presente, que lê o jornal matinal e despacha as notícias para o face, tal como o monge do baixo império ou da alta idade média despachava o trabalho da pena para a oração mental e a contemplação. À hora a que escrevo já deveria ter feito horas de trabalho de pá, enxada, ancinho e forquilha. Ontem, com sol ainda, se bem que a meio gás, lá consegui avançar na limpeza dos meus jardins e hortas e ainda deu para armazenar alguma vitamina D, apesar da minha tez morena, que se deveu ao cruzamento de todas as raças mediterrânicas, e da escassa radiação visível. Hoje não dá. Os terrenos estão encharcados bem como as botas de trabalho.

Quando os astros não deixam andar lá por fora, aproveito para limpar as casas de banho, aspirar e arrumar a casa, passar pilhas de roupa a ferro, que bom que é agora no tempo frio, fazer marmelada ou compota de pêra ou abóbora, na cozinha, ou ocupo-me a organizar a minha biblioteca, a completar os meus trabalhos de taxologista vegetal do Tremontelo, a ler ou a escrever. Instalações elétricas e reparação de móveis são coisas que fiz há pouco tempo, mas que tive que interromper por falta de materiais. Antes de comprar, é preciso planear e registar convenientemente as medidas, as formas e as qualidades do que se precisa.
Sou maníaco do trabalho e durmo pouca coisa. Hoje, foi um desvario completo, um grande regabofe. Levantei-me à hora do grande almoço para tomar o pequeno. E vim para aqui até agora, momento em que preparo a segunda refeição, sobe escadas, desce escadas, a luz que se apaga e lá se vai o computador, atender a campainha histérica de um alarme do face ou do gmail, o stress das pequenas coisas que incendeiam a vida de um sexagenário.

As interrupções são constantes. Como, por exemplo, esta agora de verificar que o meu guisado de ervilhas não pegou. Por isso, estou penosamente a tentar focar-me para atinar com a verdadeira razão que me trouxe aqui.

Já não venho aqui há muito tempo - é fácil verificar, tanto que me esqueci da senha. A memória acudiu-me à ponta dos dedos quando comecei a martelar o teclado.

Fui ver as últimas coisas que tinha escrito: andava numa de cartas. Agora, lembro-me porquê e o que pretendia caso não tivesse interrompido. Mas já não interessa. Tanta coisa aconteceu entretanto. E tanta coisa má. Pois não pode haver muitas outras coisas tão más como assistir aparvalhado à destruição impiedosa do meu país. Apesar do CR 7, que ainda assim tem o condão de nos levantar o moral.
Embora não se tenham apercebido, neste exato momento acabei de almoçar, ainda cheiram na chávena as últimas essências do café, a única substância que divinizo e adoro ritualmente. É uma perda de tempo voltar a ler o que já estava escrito que se justifica apenas por ser em benefício do putativo leitor. Pois, houve, um hiato grande que devo compensar em pouco tempo.

Depois da Universidade, um grande investimento no Tremontelo. Dois anos fora e aquilo já parecia mato. Mãos à obra, é o meu pensamento favorito nas alturas de tormenta!
O levantamento de todas as espécies vegetais, endógenas e exógenas, é trabalho para o resto da vida. Estamos nas angiospérmicas, que é obra. A recolha é sobretudo fotográfica, que os procedimentos académicos são dispendiosos em material e tempo. Algumas folhas de recorte agradável ou exótico vão a mumificar para dentro de livros, onde empalidecem e murcham com o cativeiro. Desconhecendo por completo o assunto, pus-me à cata de uma taxonomia que me servisse para auxiliar a catalogação.  Lá descobri o APG cujas 3 versões conhecidas estudei obsessivamente. Depois, o trabalho de construir uma base de dados, trabalho que ainda continua a ser feito,  para substituir mais tarde as worksheets com que tenho trabalhado.

Daqui sou levado a evocar a minha ida a Massachusetts. Gostei muito da gente com quem convivi, da beleza inesquecível de Boston e Cambridge a bordejarem as margens do Charles, dos passeios a pé num mar de verde e de ruas a ressentirem a tília. Também se come e bebe bem, sobretudo se tivermos a sabedoria de encontrar um bom restaurante português, malgré os galos de Barcelos e as loiças de barro negro de Molelos (irra que até rima!).

O que mais me atraiu aí, e que me levou lá várias vezes apesar da distância ao sítio onde vivia, e sem ter conseguido esgotar o que queria, foi o Arnold Arboretum em Jamaica Plain (www.arboretum.harvard.edu/). 
Sobretudo, o que me deu água pelas barbas, a sua maravilhosa coleção de rosáceas, a que falta certamente algumas das espécies que proliferam copiosamente no Tremontelo.

Uma outra empreitada grande foi trazer para o Tremontelo parte da biblioteca de Lisboa (até agora cerca de 1600 obras) e organizar logicamente uma biblioteca dispersa geograficamente. Mais a contrução de uma base de dados e a sua alimentação com, até agora, cerca de 4500 volumes. É obra! A par disso, obras mesmo ... de carpintaria e eletricidade. Que tão pouco espaço tão cheio, precisa de muita prateleira e suficiente iluminação. Isto requer mais formação profissional: no verão, a arte a aprender foi cortar, dobrar e tornear tubo hidronil, trabalhar com uniões, junções, tês e joelhos de 2 ou 3 vias, curvas e tampões, válvulas de corte e segurança, passadores de esfera e manómetros de pressão, tudo a macho ou fêmea; este outono, virei para a tricotomia neutro-fase acompanhada da terra bicolor, com as cores do Brasil que isso sim é terra! Os projetos não são já aquelas redes tipo mapas do metro com que canalizamos a água, que aqui requer ainda mais economia alcançada com boa utilização das caixas de junção. Os circuitos elétricos, como um simples lacete para estabelecer um interruptor à altura da mão, são de uma simplicidade e de uma beleza chocantes. Tudo isto é obra de desenho, por isso continua a arte de desenhar jardins. O cavalete é que nada: lá está a apanhar teias de aranha e a suportar mochilas de portáteis defuntos.

Depois há as leituras. Sobre quê? Ficção científica, que ainda falta ler algumas dezenas de títulos da Argonauta. Pesquisas sobre deus, o monoteísmo e os povos semitas. Ando a precisar de ir aprender aramaico que não me conformo com a leitura dos evangelhos traduzidos pelos capuchinhos ou a bíblia de Jerusalém em francês. Leituras sobre espiritualidade: depois de Francisco de Assis, Teresa de Ávila e João da Cruz, agora a vez de Alçada Baptista; agora espiritualidade cristã depois de inúmeras leituras sobre a Wicca. Física das partículas e astrofísica. Banda desenhada. Literatura contemporânea (a ler Pamuk). Filosofia (Ética, de Espinosa, a preparar-me para Arendt). Muitas pequenas leituras de Garden e de Petite Cuisine. E Gatos, muitos gatos...

Depois das leituras, as escritas. O tema é o de sempre, identificar os parasitas dos nossos cérebros humanos, particularmente aquele com que privamos mais: o Eu. Identificá-los, descrevê-los e conjeturar sobre a sua génese e funções. Mas isso não revelo aqui ... nem ali. O objetivo é conhecer a doença e administrar-lhe a terapêutica.

Finalmente os gatos. É como a gente: nascimentos, casamentos e funerais. Só que o filme leva menos tempo a correr.

4 Comentários:

At 23/11/13, 17:28, Blogger Justine comentou...

Ufffffffff, homem, que só a descrição de todas as tarefas que tens pela frente (e por trás, e aos lados...) me dá um cansaço imenso! Eu, que não passo do ler-ver cinema-jardinar-pensar-observar o meu gato-conversar com amigos e outros!
O teu retorno é um reencontro com a vida e o mundo, nesse tremontelo bem cheiroso! O meu, foi apenas um retorno a memórias.
Vamos conversando, se te apetecer!

 
At 23/11/13, 18:46, Anonymous Anónimo comentou...

E cá estou eu a provar que não sou um robot ou robô, róbou? e a saudar-te nessa gigantesca tarefa que é viver quando se pensa (nisso).
Gostei dos gatos e da viagem: do trabalho nem tanto, que a preguiça me toma, mais e mais ou mais a mais, no auge do Outono. Dos faces vou andando, muito restrita, por causa - et pourtant - de saber o que pensam os novos, neste caso o meu filho e cª. E só por isso estou lá, embora assim tenha notícias de costumadas-faces-bookianas que prezo. É uma catadupa que não aguento e continuo a gostar dos meus (3) cantos, é um "tremontelo" virtual. Casa-caseira e pouco de interagir, depois de férias cá dentro com mar à vista.
E nós por cá todos bem, exceptuando a raiva húmida e a penúria seca de aturar esta corja danada e (des)governada.
Grata pelo aceno.
Um abraço, fica bem e tem cuidado contigo,
da bettips

 
At 04/12/13, 17:44, Blogger Teresa Durães comentou...

Livros! Hum! Céu! (e eu sem tempo para nada, mas porque tenho de trabalhar?)

Gatos. Sim, até gosto, mas em casa são cadelas.

Wicca? Li também, mais uma série de outros tantos (tal como o Alçada Baptista - ou terá perdido o 'p'?) mas sempre fui mais politaísta (como pode existir uma natureza sem uma Deusa?)

"Deus quando foi criado era uma Deusa" - algures num dos livros que li. Claro, sorri

 
At 17/12/13, 17:07, Blogger Rui Fernandes comentou...

Obrigado pelos vossos comentários.

Justine: É claro que me apetece conversar com pessoas inteligentes e agradáveis como sucede com os blogueiros e longe da peixaria do FB. Não te canses com as minhas tarefas que, para isso, basto eu.

Bettips: Eu também estou arrumado à casa e faço questão de me manter solitário durante a semana. O fim de semana é para a família e para ver o mundo. A raiva veio para ficar e gostava de lhe dar um descaminho útil.

Teresa: Uma cansada, outra com preguiça e tu sem tempo. Não me acredito em vocês, isso é só para fazer conversa. Cadelas? Claro!Gatas, porque não? Não é a natureza, mas sim as bichanas que são deusas. Posso introduzir isso num tópico mais tarde ... e outro sobre a feminilidade do divino. Noutra altura...

Beijinhos para todas, com o perfume do tremontelo.

 

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